Como é que a guerra ameaça a natureza e o que podemos fazer para a recuperar? Vamos descobrir em conjunto com Ostap Reshetylo, professor associado da Universidade Nacional Ivan Franko de Lviv, perito e gestor de projetos no Fundo Mundial para a Natureza, WWF-Ucrânia.
A Ucrânia é o maior país da Europa em área situada totalmente dentro dos seus limites geográficos. A Ucrânia e os mares Negro e de Azov têm uma paisagem e um clima diversificados, que albergam cerca de 50.000 espécies de animais.
apresentação de slides
A destruição progressiva da paisagem original e a formação no seu lugar de ecossistemas artificiais, criados e controlados pelo homem, conduziu não só à extinção de muitas espécies locais, mas também ao aparecimento de espécies alóctones, as que são originárias de outras regiões do globo, como as culturas agrícolas. No século XXI, estes processos só aumentaram de escala. Além disso, desde 2014, a invasão militar russa da Ucrânia tem causado danos ao meio ambiente.
O impacto das batalhas nos ecossistemas
Foto de domínio público
Desde o início da guerra em grande escala, cerca de 25% das superfícies naturais protegidas da Ucrânia têm estado sob ocupação. São cerca de 900 sítios protegidos, incluindo 14 áreas húmidas de importância internacional. Alguns deles fazem parte da Rede Esmeralda, uma rede pan-europeia de áreas protegidas fora da UE, criada para proteger espécies e habitats ameaçados. Felizmente, algumas destas áreas foram libertadas, mas as do leste e do sul da Ucrânia continuam ocupadas.
Foto: Yurii Stefaniak
O impacto da guerra no ambiente deve ser considerado de forma completa. Não são apenas afetados os seres vivos, o estado dos componentes inanimados da natureza (solo, ar, água) também sofre. A guerra afeta todo o ecossistema. Por exemplo, se houver um impacto no solo, a biota do solo também sofre, desde os seres vivos mais pequenos (microrganismos) até aos mamíferos (toupeiras, ratos-do-campo, etc.).
A dimensão das consequências negativas da guerra só será compreendida após o seu fim. Atualmente, é impossível fazer um estudo holístico do ambiente, porque é proibido visitar áreas com combates ativos ou minas.
Quando se trata da poluição ambiental causada pelas ações militares, é sobretudo o solo que deve ser examinado, uma vez que nele se acumulam muitas substâncias nocivas, em especial devido às numerosas explosões e aos impactos dos mísseis. Não se tratam apenas de metais, cujos fragmentos permanecerão no solo durante muito tempo, mas também de vários produtos químicos que penetram nele. Esta contaminação prolongar-se-á por anos, se não mesmo décadas.
Os rios e os lagos são menos afetados, uma vez que os sistemas hídricos se autopurificam através da dinâmica da fauna e flora, do fluxo de água e da sedimentação dos poluentes no fundo.
Foto: Yurii Stefaniak
O ar também fica poluído, mas este dano ambiental é de nível mais baixo. Por ser local e porque as massas de ar são as mais móveis no ambiente, a concentração de substâncias nocivas é transportada, dispersa, sedimentada e reduzida. Isto não quer dizer que o processo é completamente seguro. Por exemplo, a chuva ácida pode cair algures e causar danos às plantas e ao solo. O solo é a parte mais passiva do ambiente e a que acumulará o principal impacto.
Efeitos nos animais
Enquanto as explosões de minas terrestres causam mortes isoladas, os sons e os clarões da guerra podem ter um efeito profundo no futuro das populações. O impacto direto da guerra é menos sentido pelos animais que têm mais mobilidade, sentem receio e possuem sistemas de autopreservação mais desenvolvidos. Por exemplo, os grandes mamíferos, como os ursos, os lobos, os linces, os veados ou os alces, não são vistos com frequência, nem em tempo de paz, muito menos nas regiões onde se desenrolam atualmente combates. O som das explosões assusta-os muito. Quando têm oportunidade, fogem delas. Há casos de veados e outros animais de grande porte que foram mortos por minas ou fios de tropeçar em áreas minadas. Essas mortes são lamentáveis, mas na maioria dos casos estamos a falar de só alguns animais.
Foto: Yurii Stefaniak
Em vez disso, é o ruído provocado por explosões, tiros, máquinas, relâmpagos noturnos que desorienta e assusta os animais, obrigando-os a reagir de forma diferente e a alterar os seus ciclos de vida habituais. Deste modo são afetadas as perspetivas da população. Por exemplo, se uma floresta arde ou um corpo de água fica tão poluído que os organismos simplesmente não podem existir, estes são obrigados a procurar um novo ambiente adequado. Se for difícil fazê-lo, ou se não existirem áreas adequadas nas proximidades, isto tem consequências negativas, incluindo a falta de alimentos, que pode levar à morte de parte da população.
À primeira vista, pode parecer mais fácil para as aves a mudança de habitat, pois são animais móveis. Porém, não é assim tão simples. Os voos e as migrações das aves são fenómenos bastante estabelecidos com rotas e parâmetros temporais claramente definidos. A guerra também as perturbou: desorientação, ameaça de morte, falta de locais seguros de repouso, alimentação e nidificação. Nas florestas, por exemplo, o chamado período de silêncio vai de abril a junho, altura em que os animais costumam reproduzir-se na natureza. Agora imaginemos que tudo à nossa volta explode e arde. Como é que se processa a reprodução normal? Algumas espécies terão menos ou nenhum recém-nascido. Isto alterará quer a dinâmica da população quer o seu número no futuro.
Neste momento, é demasiado cedo para afirmar que a guerra mudou as rotas migratórias das aves, porque estas têm instintos muito desenvolvidos para regressar aos mesmos locais ou a uma área próxima do seu habitat habitual. Sabemos disso, em particular, pelo exemplo das cegonhas, que tentam regressar ao mesmo sítio ou até ao mesmo ninho. Por enquanto, as rotas de migração das aves e a sua ligação a essas áreas manter-se-ão provavelmente, mas quanto mais tempo durar a guerra, mais provável é que o seu comportamento estabelecido se altere e que elas morram ou não consigam reproduzir-se.
Foto: Yurii Stefaniak
Os animais inferiores (em termos de desenvolvimento evolutivo – ed.) têm frequentemente maiores taxas de mortalidade, porque são menos móveis e não podem afastar-se tanto como as aves ou os animais de grande porte. No entanto, esses animais são menos sensíveis a relâmpagos e sons. Por conseguinte, se a área ou território que constitui o seu habitat tiver sido poupado a combates ativos, estes animais não são diretamente prejudicados.
Que espécies estão em perigo de extinção na Ucrânia?
Estão principalmente ameaçadas as espécies raras que se encontram nos territórios de estepe, onde se registou a maior parte da destruição.
A águia-das-estepes é uma ave de rapina que aparece ocasionalmente na região de Azov e Mar Negro, durante a migração. Integra o Livro Vermelho da Ucrânia das espécies ameaçadas com o estatuto de “em perigo”. Um dos últimos locais de nidificação desta espécie foi registado em Askania Nova, que está ocupada pelas tropas russas desde o início da guerra em grande escala.
Foto: Serhii Korovainyi.
O toirão-jaspeado é um pequeno predador da família das martas. Por só existirem cerca de 100 indivíduos na Ucrânia, este animal está incluído no Livro Vermelho da Ucrânia com o estatuto de “vulnerável”. O toirão-jaspeado prefere a estepe, menos frequentemente os arbustos e os vales dos rios em Donetsk e no sul de Slobozhánshchyna. Atualmente, porém, os seus habitats estão a ser destruídos pelas operações militares.
A marmota das estepes é um roedor conhecido como um prenúncio da primavera. Estas marmotas alimentam-se da vegetação das estepes. As principais populações encontram-se em Slobozhánshchyna e Donéchchyna. Em 2021, a marmota foi incluída no Livro Vermelho da Ucrânia e imediatamente reconhecida como uma espécie “em perigo”. A população do animal atingiu um ponto crítico devido à caça ativa, à destruição e fragmentação do habitat e, atualmente, às operações militares.
Os bisontes das subpopulações de Zalíssia e Konotop, que também estão inscritas no Livro Vermelho da Ucrânia, têm estado na linha russa de ataque desde os primeiros dias da guerra em grande escala. Mais de um mês de ocupação temporária russa destes territórios afetou o estado geral e o número de animais.
Mais especificamente, os sectores sul do Parque Natural Nacional de Zalíssia, juntamente com as aldeias circundantes, foram palco de hostilidades. O parque foi sujeito a fortes bombardeamentos de artilharia e morteiros, e as unidades e o equipamento militar deslocaram-se ao longo das estradas florestais. Grandes áreas do parque foram minadas, o que continua a constituir um problema para a segurança das pessoas e dos animais desta região. Em consequência da guerra, os bisontes de Zalíssia perderam os seus machos. Isto significa que a manada não se pode reproduzir. A não ser que seja introduzido pelo menos um bisonte macho num futuro próximo, esta subpopulação está condenada à extinção.
Foto: Rafał Kowalczyk
Embora não houvesse hostilidades ativas no território da exploração florestal de Konotop, o ronco e o ruído do equipamento militar tornaram-se stressantes para os animais, incluindo os bisontes, que se deslocaram para o interior da floresta, abandonando os seus habitats habituais. Quase um ano depois, os animais regressaram aos seus locais de alimentação habituais. Isto permitiu aos cientistas descobrir que não havia bisontes jovens nascidos durante esse ano na manada. Muito provavelmente, este é um efeito da interferência perturbadora no seu ambiente.
A invasão russa da Ucrânia levou à suspensão de um projeto de recuperação dos bisontes na área de exclusão de Chornobyl, desenvolvido pela Sociedade Europeia dos Amigos dos Bisontes (European Bison Friends Society) e apoiado financeiramente pelo Fundo Mundial para a Natureza (World Wide Fund for Nature). A cooperação consistia em potenciar uma nova população através da criação de uma manada de nove bisontes que seriam transportados da Polónia. Foi especialmente construído um novo recinto de 4 ha na área de Chornobyl para alojar os animais antes de os libertar na natureza. Quando a fase de transporte do projeto estava cuidadosamente planeada e quase pronta para ser implementada, começou a invasão russa em grande escala da Ucrânia e a transferência dos bisontes foi suspensa. Apesar da ocupação temporária destes territórios, o recinto permaneceu intacto. Por conseguinte, a equipa do WWF-Ucrânia acredita que a fase final do projeto de reintrodução do bisonte na área de Chornobyl pode ser reiniciada após a vitória da Ucrânia e a desminagem completa do território.
10 Bisontes, Parque Nacional de Natureza “Tsumanska Puscha”, Kivertsi. Foto cedida pelos autores.
Como alterar a situação
A invasão militar da Ucrânia pela Rússia está a provocar um impacto significativo em todos os ecossistemas naturais. Os recursos biológicos aquáticos, inscritos no Livro Vermelho, estão também a ser afetados. A explosão da central hidroelétrica de Kakhovka desencadeou uma catástrofe ambiental e humanitária e ameaçou a existência de muitas espécies de vida selvagem, incluindo o esturjão. O esturjão é considerado uma espécie de “guarda-chuva”, na medida em que a sua conservação apoia a preservação de outras espécies e garante a sustentabilidade dos ecossistemas no seu todo. Atualmente, todas as espécies de esturjão existentes nas águas ucranianas estão em perigo ou são vulneráveis. A deterioração das condições de reprodução e o impacto da pesca ilegal conduziram a um declínio significativo da população e à sua inclusão no Livro Vermelho da Ucrânia.
Repovoamento piscícola do Danúbio com esturjão. Foto cedida pelo autor
Em 18 de outubro de 2023, a equipa do WWF-Ucrânia lançou 2.500 juvenis de sterlet e de esturjão russo no rio Danúbio. O repovoamento piscícola ou peixamento não é apenas uma questão de conservação da natureza, mas também um objetivo estratégico a longo prazo para ajudar a restaurar a população de esturjão no Danúbio e assegurar a monitorização e a proteção dos seus habitats. Além disso, o Ministério da Política Agrária e da Alimentação da Ucrânia está a trabalhar na criação de explorações aquícolas de esturjão para proporcionar aos pescadores uma fonte alternativa de rendimento e combater a caça furtiva de espécies de esturjão para a produção de caviar negro, que é a principal razão para o seu estatuto de espécie em estado crítico de conservação.
Repovoamento piscícola do Danúbio com esturjão. Foto cedida pelo autor
Este é um dos mecanismos de recuperação ambiental na Ucrânia, e um passo importante para aumentar a população de esturjão do Danúbio e melhorar a biodiversidade.
A natureza leva tempo a recuperar. Uma árvore pode ser destruída num instante, mas quanto tempo é necessário para que volte a crescer? Isto também é verdade para outros componentes dos sistemas naturais, nomeadamente, a dimensão da população, se esta diminui ou desaparece do território da Ucrânia. E aqui coloca-se a questão: quando é que as espécies raras poderão recuperar, e será que conseguirão recuperar de todo?
Foto: Yurii Stefaniak
A Ucrânia tem muitas espécies raras das estepes cujos habitats são pequenos e se concentram principalmente na parte sudeste da Ucrânia, onde se registam as mais intensas operações militares, no território de Donetsk e da Crimeia, ocupados há nove anos. Ainda não sabemos o que está a acontecer com as populações de répteis raros, algumas espécies raras de predadores ou os invertebrados marinhos. É claro que, quando a guerra terminar, serão efetuadas investigações, mas os resultados poderão chocar-nos. Como é que tudo isto pode ser recuperado? Em primeiro lugar, será preciso tempo e, em segundo lugar, muito dinheiro. Temos também de estar preparados para a possibilidade de perdermos elementos naturais e de não sermos capazes de os recuperar na forma anterior à guerra. Com isso em mente, devemos repensar o que existe para ser restaurado.