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Nesta segunda parte da série explicativa sobre o Golodomor, decidimos compartilhar as mentiras mais famosas e chocantes sobre o genocídio de 1932-1933 na Ucrânia. Você provavelmente já ouviu muitas vezes que o Golodomor não existiu, que houve uma quebra de safra, que a fome atingiu toda a URSS, ou até mesmo que a fome foi causada pelos próprios ucranianos. Neste artigo iremos refutar as mentiras mais comuns.

O Golodomor foi uma política da União Soviética que visava a destruição da nação ucraniana. Foi confirmado por centenas de testemunhas, documentos e anotações em diários. À primeira vista, as fotos em arquivos das vítimas do Golodomor, as histórias horríveis sobre a existência dos “quadros negros” (ou “quadros infames”), a intimidação por parte de ativistas e o sistema judicial existente não deveriam ter deixado dúvidas sobre o crime cometido pelo regime soviético. No entanto, ainda é difícil de se recuperar desse trauma histórico enquanto houver quem duvide da sua veracidade. Portanto, a seguir iremos acabar com os chamados “mitos” sobre o Golodomor de 1932-1933.

A morte causada pela fome nas ruas de Kharkiv, 1933. Foto tirada pelo engenheiro A. Wienerberger. As fotografias foram fornecidas por Samara Pearce, bisneta de A. Wienerberger.

Não houve fome

“Não levantamos questões de natureza fantasiosa como o Golodomor, politizando problemas comuns do passado”, disse o atual presidente russo Vladimir Putin, em 2008. A Rússia ainda mantém esta posição, confirmando plenamente a sua imagem como sucessora da União Soviética. Estas palavras reproduzem uma das mentiras mais comuns sobre o Golodomor, deliberado e escrupulosamente realizado pelas autoridades soviéticas há quase um século.

Em geral, os defensores deste mito muitas vezes alegam que houve fome, mas que não foi causada pela política proposital do governo soviético; foi apenas por coincidência. Essas circunstâncias foram causadas pela sabotagem por parte dos camponeses ucranianos, a necessidade de manter o Estado em destaque durante a Grande Depressão e as condições meteorológicas adversas. No topo está a afirmação de que não houve Golodomor, porque a sua escala e consequências são exageradas.

Tal mentira frequentemente faz as pessoas duvidarem de como a fome foi possível no país que realizava a modernização. Supostamente, a União Soviética alimentava todos. Porém na URSS, assim como antes no Império Russo, a Ucrânia era apenas uma fonte de matéria-prima. Seu papel era fornecer minérios e metais, além de obedecer silenciosamente ao sistema. Os camponeses ucranianos não tinham lugar nesse sistema.

O historiador Roman Podkur. Foto de Oleh Pereverzev.

“Alimentos e todos os utensílios domésticos passaram a ser distribuídos por meio de cartões. Toda a população foi dividida em 5 categorias. A maior categoria era formada por mineiros, metalúrgicos e pessoas que realizavam trabalho físico pesado. Eles recebiam 800g de pão, 200g de carne, alguns peixes e um pouco de manteiga por mês. Também recebiam vários litros de óleo e um pouco de cereal para misturar com água. Este era o conjunto mínimo de mantimentos para os trabalhadores. As outras categorias eram “inferiores”. A categoria 5 incluía os dependentes dos mesmos trabalhadores. Os camponeses não foram incluídos neste sistema centralizado de abastecimento, o que significava que tinham de se sustentar. Portanto, esta é mais uma mentira, que afirma que o governo soviético alimentava a todos. Sim, alimentava algumas pessoas, mas apenas os trabalhadores e empregados que estavam nas cidades, bem como a elite do Partido Comunista”, diz o historiador Roman Podkur.

Se ele (o Golodomor — tr.) aconteceu, por que todos permaneceram em silêncio?

— Havia diversos motivos: as testemunhas temiam pelas suas vidas e sofriam por causa dos traumas que tinham vivido; a liderança do partido não poderia reconhecer tais ações; e os demais simplesmente não tinham nenhuma informação e foram influenciados pela propaganda soviética.

A década de 1930 testemunhou o auge das repressões soviéticas. Acusações fictícias de dissidência, contrapropaganda, cosmopolitismo e nacionalismo burguês levaram a milhões de prisões e deportações para o Gulag, sistema de campos de trabalhos forçados soviéticos. Falar abertamente na União Soviética sobre mais de 7 milhões de vítimas de uma política direcionada de extermínio de ucranianos significava assinar a sua própria sentença de morte. Mesmo entre a liderança do partido, um círculo muito limitado de pessoas próximas de Stalin – Kosior, Kaganovich, Molotov e Postyshev – sabia da real situação. Aqueles que sabiam esconderam a verdade ou culparam a alta administração, negando responsabilidade, porque já faziam parte do sistema.

“No Estado soviético, era possível que a liderança realizasse muitas ações sem aprovação por meio de documentos. Embora, quando falamos do Golodomor, haja documentos e correspondências, há também muitas evidências da natureza programada da fome. No entanto, em qualquer caso, você poderia fazer muito sem falar sobre seus planos reais ou falar sobre eles por meio de insinuações”, — Vitalii Portnikov, jornalista.

Local de sepultamento em massa de pessoas que morreram de fome, na região de Kharkiv. Foto da Coleção do Cardeal Theodor Innitzer (Arquivo da Diocese de Viena). Foto tirada pelo engenheiro A. Wienerberger. As fotografias foram fornecidas por Samara Pearce, bisneta de A. Wienerberger.

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Reprodução do Genocídio da Fome na Ucrânia, 1932–1933: Arquivos Ocidentais, Testemunhos e Novas Pesquisas / Editado por Wsevolod W. Isajiw. – Toronto: Centro Ucraniano Canadense de Pesquisa e Documentação, Toronto, 2003. Foto da Coleção do Cardeal Theodore Innitzer, (Arquivo da Diocese de Viena). — Arquivo Central de Filmes, Fotos e Som de Pshenychnyi.

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Outro motivo para o silêncio foi a destruição de dezenas de aldeias. Há menos testemunhas destes acontecimentos, uma vez que famílias inteiras e ruas inteiras das aldeias dos “quadros negros” (“quadros infames”), fechadas à entrada e saída, desapareceram. As aldeias que não cumpriam os planos de recolhimento de grãos eram adicionadas a esse “quadro negro”, o que significava isolamento completo do mundo exterior. Elas eram cercadas por tropas e seus habitantes eram completamente privados de alimentos até morrerem.

– Por que outros países não protestaram contra eventos tão desumanos?

– Não, eles não o fariam. A maior parte das informações não conseguia atravessar a Cortina de Ferro para outros países de fora do sistema totalitário.

Em 26 de agosto de 1933, o político francês Edouard Herriot chegou a Odesa a bordo de um navio a vapor. Stalin ordenou que organizassem um “tour” para o convidado e dirigissem sua atenção para as cidades prósperas, em vez dos corpos inchados nas aldeias. Como resultado, no dia 13 de Setembro, o jornal “Pravda” (“Verdade”) publicou um artigo intitulado “O que vi na Rússia é lindo”.

Visitas organizadas a aldeias que morreram de fome e mais tarde foram repovoadas e apresentadas como um modelo de prosperidade (como a aldeia de Havrylivka, na região de Dnipropetrovsk) formavam os métodos típicos da URSS.

Foto de Oleh Pereverzev.

“Ela (a União Soviética) poderia fazê-lo quase impunemente, simplesmente explicando: ‘Bem, há fome no nosso país; estamos tentando ajudar as pessoas, mas nem tudo está ao nosso alcance’. O tamanho da fome foi ocultado. As resoluções das autoridades soviéticas que tornaram esta fome forçada foram ocultadas. Moscou ainda afirma que a fome não foi artificial, com base em todas as decisões que foram tomadas durante o governo de Stalin e esconderam a verdadeira escala da tragédia.” — Vitali Portnikov.

Evidências da terrível fome na URSS mesmo assim chegaram à imprensa estrangeira. O jornalista britânico Gareth Jones, por exemplo, deu conferências de imprensa na Alemanha em março de 1933 após uma viagem à URSS. Ele afirmou: A Ucrânia, como parte da URSS, está sob maior pressão e centenas de pessoas estão morrendo lá sem comida. Diversos outros jornalistas escreveram sobre os acontecimentos na Ucrânia, como Malcolm Maggeridge, bem como diversas publicações nos Estados Unidos.

No entanto, o problema com estas pessoas e publicações era que eles não eram tão confiáveis quanto o seu colega Walter Duranty. O vencedor do Prêmio Pulitzer, colaborador próximo do presidente Franklin D. Roosevelt e o único jornalista estrangeiro a entrevistar Stalin pessoalmente, venceu. Ele alegou que a fome era apenas uma invenção, que a sua escala era muito exagerada e que a escassez temporária de alimentos era uma fase natural na formação da URSS. O público acreditou nele.

Além das dificuldades de entrada na URSS, em 1933 os estrangeiros que visitavam o país eram proibidos de visitar o território da Ucrânia e do Kuban (região da Rússia habitada principalmente por ucranianos). Esta decisão de Stalin foi tomada pelos artigos e declarações dos jornalistas ocidentais sobre a verdadeira situação da Ucrânia. A imprensa independente foi, portanto, privada de quase todas as fontes primárias de informação. Com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, até mesmo menções isoladas eram removidas da esfera pública.

– Há alguma evidência?

– Sim. As evidências são os milhares de documentos (alguns abertos e outros ainda escondidos nos arquivos de Moscou), depoimentos de centenas de milhares de testemunhas, pesquisas, investigações e muitos outros materiais.

“Todos dizem: mostre quais os elementos que provam a destruição deliberada da população. Estes foram os planos de recolhimento de grãos. Foi a ferramenta com a qual Stalin se aproximou da Ucrânia e começou a puni-la”, afirma Roman Podkur.

Hoje, o Golodomor é reconhecido como genocídio por 35 países. Para isso, foi necessário comprovar as ações intencionais contra um grupo específico de pessoas. Milhares de testemunhas contaram a verdade e as suas histórias tornaram-se a base para tal reconhecimento. O ativista dos direitos humanos Raphael Lemkin também chamou o Golodomor de genocídio. Os testemunhos foram complementados por arquivos que foram disponibilizados juntamente com a independência da Ucrânia. Hoje, o trabalho continua, e os pesquisadores do Museu do Golodomor continuam a entrevistar testemunhas. Mais histórias desse tipo podem ser vistas na série Ukraїner sobre as testemunhas do Golodomor e no site do Museu do Golodomor na página de Testemunhos.

Centenas de páginas de documentos ainda permanecem trancadas nos arquivos do Kremlin. O mais provável é que a Rússia nunca conceda acesso a estes documentos, pois eles confirmam o fato do genocídio da nação ucraniana.

Preparação de grãos para envio ao posto de abastecimento da fazenda coletiva nomeada H. Petrovskyi. Aldeia de Petrovo-Solonykha, na região de Mykolaiv, 1933. — Arquivo Central de Filmes, Fotos e Som de Pshenychnyi.

Safras ruins causaram a fome

Esta mentira pode ser considerada uma variação da anterior — eles afirmam que o Golodomor não existiu, mas que houve fome devido às safras ruins. Além disso, afirmam que não houve nenhuma política de Stalin e dos seus apoiadores dirigida contra a nação ucraniana.

Na verdade, o Golodomor não foi causado por safras ruins. Foi causada pelas ações dirigidas das autoridades soviéticas – a destruição pela fome – contra os aldeões ucranianos. Em 1932, não foram registadas condições meteorológicas críticas que pudessem levar à escassez de grãos e à morte de mais de 7 milhões de pessoas. Naquele ano, em comparação com 1931, um número menor de grãos foi efetivamente colhido (12,8 milhões de toneladas contra 17,7 milhões de toneladas em 1931). A razão para os rendimentos mais baixos foi a política mal pensada de recolhimento: nas aldeias, não havia cereais suficientes para semear os campos, pois estes eram cada vez mais exportados para fora da URSS, não deixando nada para ser semeado. No entanto, mesmo esse número teria sido suficiente para evitar a fome, caso não houvesse uma política intencional de genocídio.

“As autoridades comunistas regionais, que estavam cientes da situação, nunca mencionaram secas ou chuvas fortes. Disseram apenas que algo havia acontecido em algumas áreas, mas era muito raro. Eles nunca mencionaram as condições climáticas. Ou seja, se não mencionaram condições climáticas e não disseram que estas se tornaram um dos principais motivos da fome em massa da população, tais condições não existiram”, — Roman Podkur.

Testemunhas também afirmam, por exemplo, que não houve fome a poucos quilômetros do outro lado da fronteira, nas aldeias e cidades vizinhas. As regiões ucranianas fronteiriças de Sivershchyna e Slobozhanshchyna sofreram, mas não houve problemas de colheita nas proximidades, na Rússia ou na Belarus. Em caso de desastres naturais, mais de um país teria sofrido.

“Enquanto a Ucrânia mantiver a sua unidade nacional, enquanto o seu povo continuar a considerar-se ucraniano e a procurar a independência, a Ucrânia será considerada uma séria ameaça ao próprio coração do sovietismo. Não é de admirar que os líderes comunistas atribuíssem a maior importância à russificação deste membro de mentalidade independente da sua “União das Repúblicas”, e tenham decidido reformá-lo para se adequar ao seu padrão de uma única nação russa.

O povo ucraniano não é, e nunca foi russo. A sua cultura, o seu temperamento, a sua língua, a sua religião, tudo é diferente. … Ele recusou ser coletivizado, aceitando a deportação e até mesmo a morte. E, por isso, é particularmente importante que o ucraniano se encaixe no padrão procustiano do homem soviético ideal.”

Raphael Lemkin, o fundador do conceito de genocídio, ativista dos direitos humanos. Em seu artigo: “Genocídio Soviético na Ucrânia”.

Savytska A., membro da fazenda coletiva em homenagem ao Comintern, distrito de Yampil, região de Vinnytsia, no campo durante a colheita de grãos. Região de Vinnytsia, 1939.

Uma tendência mais real deste período é que a fome desta escala era exclusiva nas regiões onde os ucranianos constituíam a maioria da população: Kuban, algumas áreas do Norte do Cáucaso e as regiões do Baixo e Médio Volga. A política dos “quadros negros” foi aplicada pela URSS em nenhum outro lugar, apenas aqui, matando aldeias inteiras. As resoluções de repressão mais sérias diziam respeito tanto à Ucrânia como à região de Kuban. Os organizadores da fome eram as mesmas pessoas: Mikoyan e Kaganovich controlavam tudo pessoalmente no norte do Cáucaso, e este último continuou mais tarde a organizar a fome na Ucrânia.

Em 1 de janeiro de 1932, os Fundos Invioláveis e de Mobilização da URSS continham 2 bilhões de toneladas de grãos e, em 1 de janeiro de 1933, continham 3 bilhões de toneladas. Estas reservas eram suficientes para alimentar 10 milhões de pessoas em 1932 e 15 milhões em 1933 (em comparação: mais de 7 milhões de pessoas morreram em 2 anos). Em 1932-1933, a URSS exportou ativamente grãos. Em maio de 1933, 2.738.423 toneladas de grãos colhidos em 1932 foram exportados através dos portos marítimos.

Por cumprir com 97% de um plano anual para o fornecimento de grãos para exportação pela Ucrânia (ou seja, para a organização do Golodomor), Moscou recompensou a liderança máxima da Ucrânia soviética. Em 29 de abril de 1933, P. Liubchenko, Vice-Presidente do Conselho do Comissariado do Povo da Ucrânia, assinou uma petição para premiar funcionários do departamento de comércio exterior da Ucrânia.

Xilogravura “O que é exportado da Ucrânia para a Rússia” do portfólio de Nil Khasevych.

A fome se espalhou por toda a URSS

“Os russos… a aldeia russa de Bondarevo fica a sete quilômetros de nós, da nossa aldeia Hannusivka, então, se as mulheres tivessem cobertores, toalhas ou outras coisas, elas levavam para a aldeia russa. Em troca, eles poderiam dar-nos um pedaço de pão… A Rússia não morria de fome. Bem ao nosso lado. Quem quer que estivesse mais forte, ou quem conseguia se levantar, levava as toalhas, levava tudo para a Rússia. Eles fizeram trocas e assim permaneceram vivos. E os russos… eles viviam tão perto e não viviam mal” (Povolotskyi I., nascido em 1927 na aldeia de Hannusivka, distrito de Novopskovsk, região de Luhansk).

O genocídio de 1932-1933 deixou muitas memórias de testemunhas que viveram nas fronteiras de outras repúblicas soviéticas. Na aldeia russa vizinha havia pelo menos um pouco de comida e a oportunidade de sobreviver. As pessoas tentaram fugir não apenas para as cidades ucranianas, mas também para o leste, para a própria Rússia.

Na comunicação de Stalin com aqueles que lhe eram próximos (os organizadores do Golodomor), o tema da Ucrânia foi de particular importância. Numerosos despachos, atas de congressos do partido e memórias comprovam isso.

O principal instrumento para exterminar a população foi a decisão de Moscou de adotar na Ucrânia cotas inatingíveis de recolhimento de grãos. Da colheita de 12,8 milhões de toneladas em 1932, estava previsto que 53% dos grãos fossem confiscados das aldeias ucranianas, em comparação com 39% um ano antes, quando a colheita bruta foi de 17,7 milhões de toneladas. Os grãos que sobraram não foram suficientes para a subsistência da população. Alguns confiscos chegaram à taxa de 70-75%, o que colocou os aldeões em risco de morte. Para implementar o plano, as autoridades centrais de Kyiv, em 7 de janeiro de 1933, exigiram “o confisco de todo o cereal disponível, incluindo os chamados fundos de sementes”. Na verdade, as aldeias ficaram sem qualquer alimento e sem a oportunidade de semear.

Em 18 de novembro de 1932, o Comitê Central do Partido Comunista Ucraniano emitiu a resolução ‘Sobre Medidas para Fortalecer o Recolhimento de Grãos’. A prática dos ‘quadros infames’ veio em seguida. Decisões específicas sobre a remoção de aldeias desses ‘quadros’ eram tomadas pelos comitês executivos regionais. Em 1932-1933, 25% dos distritos, incluindo 400 fazendas coletivas na região de Kharkiv, faziam parte deles.

Funeral de um ativista da aldeia. Serhiivka, região de Donetsk, início da década de 1930.

Os ucranianos não tentaram resistir

Outra mentira popular sobre o Golodomor é uma variação do princípio de “culpar a vítima”: se os ucranianos não resistiram, eles próprios permitiram que tal situação se desenvolvesse. A verdade aqui é exatamente o oposto: o Golodomor foi cometido porque os ucranianos resistiam.

“Os chauvinistas russos, grupo ao qual Stalin pertencia, embora fosse bolchevique, ficaram simplesmente chocados com o que estava acontecendo nas terras ucranianas em 1917-1920. E, mesmo depois de a Ucrânia ter sido ocupada pela URSS, as discussões entre a elite do Partido Comunista sobre a independência do país continuaram. Ao mesmo tempo, as revoltas de camponeses e a resistência à coletivização também”, diz Vitalii Portnikov.

A política absurda da URSS, a coletivização forçada e a atribuição de pessoas a kolhosps (abreviatura de “fazendas coletivas” em ucraniano — ed.) não eram vistas de forma positiva pelos proprietários privados de terras, que eram a maioria dos aldeões antes da coletivização. Até 90% dos ucranianos viviam em aldeias. Assim, Stalin e os seus apoiadores recorreram ao extermínio total da população ucraniana com bases nacionais.

“A população rural estava na verdade “acorrentada” aos kolhosps e era impossível deixá-los. Foi uma escravidão agrícola coletiva, que só cessou em meados da década de 1960. Naquela altura, os aldeões começaram a obter documentos de identificação, o que lhes deu o direito de abandonar os seus postos em kolhosps e ir embora.” — Roman Podkur.

A group of activists of the Borova machine-tractor station in the Chernivtsi district, the Vinnytsia region. Borova village, 1936.

Em 1930, um terço de todos os protestos nas aldeias contra o domínio soviético nas repúblicas da URSS aconteceram na Ucrânia. Mais de um milhão de pessoas participaram deles. No mesmo ano, ativistas, comissários recolhedores de grãos e trabalhadores da Administração Política do Estado foram atacados 2.779 vezes em aldeias ucranianas. Foram 20,12% de todos os casos do tipo em toda a URSS.

Para impedir tais protestos, no início de 1930 até 10 de Dezembro, segundo dados do governo, 70.407 explorações agrícolas na Ucrânia foram deskulakizadas. Destas, 31.993 famílias foram deportadas (146.229 pessoas): 19.658 famílias para o Krai (Terra) do Norte da Rússia e 11.935 para a Sibéria. Porém, a resistência da população não parou.

Com a intensificação da repressão e a apreensão gradual não só de grãos, mas também de alimentos, as pessoas tentaram manter estoques secretos. Ali, em covas, debaixo dos telhados, nas paredes, nos fogões, as pessoas guardavam os seus alimentos para salvar as suas famílias. Muitos desses estoques foram encontrados por patrulhas, que levaram até o último grão. As pessoas também tentaram fugir das aldeias famintas para as cidades. Alguns foram para aldeias vizinhas onde viviam não-ucranianos. Nessas aldeias era possível encontrar algum alimento e, assim, sobreviver e salvar a família.

Em janeiro de 1933, por exemplo, foram registrados casos no distrito de Kalynivka em que as pessoas riam abertamente dos trabalhadores do kolhosp, dizendo: “Porque é que vocês vão trabalhar no kolhosp? Por que? De qualquer forma, vocês não receberão nada”.

A fuga dos kolhosps e a sabotagem tornaram-se outras formas de resistência. Assim, o oficial Karlson informou em 13 de julho de 1932 que, apenas em junho, foram recebidos 14.055 pedidos para abandonar os kolhosps (em 4.754 kolhosps de 111 distritos). Ativamente, por meio de protestos, ou passivamente, por meio da sabotagem, os ucranianos resistiram ao sistema soviético com todas as suas forças, mais do que em qualquer outro lugar da URSS. E assim, mais do que em qualquer outro lugar da URSS, pagaram o preço de mais de 7 milhões de vidas.

Xilogravura “O que é exportado da Ucrânia para a Rússia” do portfólio de Nil Khasevych.

O Golodomor foi organizado por moradores locais

Os defensores desta falsa afirmação dizem que a culpa não é de Moscou, e sim das autoridades locais ucranianas, que cumpriram os requisitos da política de recolhimento de grãos. No entanto, eles muitas vezes omitem um detalhe importante – as posições daqueles que levaram a cabo estas ações. Quase todos eles pertenciam ao Partido Comunista da Ucrânia. Ou seja, de uma forma ou de outra, cada uma das pessoas envolvidas, independentemente da sua nacionalidade, era, antes de mais nada, um membro do partido. E assim, faziam parte do governo de ocupação soviético. Estas pessoas não estavam do lado dos ucranianos.

“Nosso avô fazia esconderijos nos poços. Num tronco, na sua horta, no quintal. E no campo. Ele marcava esses lugares. Ele colocava um pouco de grama despercebida embaixo neve. Não desenterramos beterrabas plantadas em nossa horta. Nós as desenterramos depois, congeladas. As autoridades não confiscavam beterrabas congeladas. E nós as comemos. No verão, colhíamos espigas, procurávamos esquilos, pegávamos codornizões na campina e comíamos pombos. Meu avô tinha um pombal e aos poucos comíamos os pássaros. Perdemos nosso cachorro e meu avô disse que os lobos poderiam tê-lo comido. Eles vieram — eu os vi. Mais tarde, nossa mãe nos contou que havíamos comido aquele cachorro. Os membros do Komsomol alertavam seus parentes e diziam aos seus conhecidos para esconderem batatas e comida para sobreviver. Eles foram fuzilados mais tarde por causa disso.” — Tsyba Vasyl, nascida em 1928 na aldeia de Raihorodok, região de Chernihiv.

As autoridades locais deliberadamente  atrasaram a aprovação dos planos de recolhimento de cereais, mais tarde recusaram-se a cumpri-los, abandonaram o partido, abandonaram os seus empregos, e assim por diante. Na região de Zhytomyr, de acordo com os relatórios oficiais, Ponomanchuk, chefe do conselho da aldeia de Bondarivka e membro do Partido Comunista, disse numa reunião sobre o assunto: “Não posso aceitar o plano. Vocês podem me processar e confiscar o meu cartão de membro do partido.” O governo soviético agiu de forma intransigente: tais ultimatos sempre eram executados, sendo os infratores severamente punidos pela desobediência. Certa vez, A. Voltianskyi, comissário do distrito de Melitopol, deu um tiro no antebraço esquerdo para não participar do confisco de grãos. Ele foi condenado a 10 anos em um campo de concentração. E tais casos não eram incomuns.

A princípio, até mesmo a liderança do partido na Ucrânia tentou transmitir a Stalin que os planos para os cereais eram impraticáveis. No entanto, Stalin chamou Kosior, o então líder da Ucrânia soviética, de “um homem de coração mole”. Depois disso, as repressões só se intensificaram. A liderança do Partido Comunista tinha total conhecimento do que realmente estava acontecendo na Ucrânia naquela altura. A prova disto são numerosos relatórios e notas sobre a situação real, bem como provas do reforço das medidas para destruir os aldeões ucranianos.

A Bandeira Vermelha transitória na estação de máquinas e tratores de Lozova, concedida ao kolhosp denominado “Nova Vida” (região de Kharkiv) pelo trabalho árduo durante a campanha de semeadura. Maio de 1932.

Já sabemos tudo sobre o Golodomor há muito tempo

Em 1937, um novo censo foi feito na URSS. Este desde o início foi um pouco diferente do planejado: aconteceu em apenas um dia. E, depois de receber os primeiros resultados do censo populacional, Stalin ordenou manter tudo em segredo. Para garantir que a informação não vazaria, os organizadores do censo foram ameaçados.

A URSS tentou de todas as maneiras ocultar quaisquer menções, documentos, registros ou publicações que pudessem confirmar a morte de milhões de pessoas na Ucrânia. Isto foi facilitado pela máquina da propaganda, que conseguiu silenciar as vozes de dezenas de jornalistas, mesmo longe nos Estados Unidos e no Reino Unido. Em circunstâncias misteriosas, os registros de nascimento e óbito desapareciam, aldeias extintas eram habitadas e pessoas morriam (como por exemplo Gareth Jones, que morreu misteriosamente durante a sua viagem à Mongólia Interior).

Durante muito tempo, as únicas evidências foram as lembranças daqueles que sobreviveram e conseguiram fugir para outros países. Na década de 1980, James Mace coletou as memórias de centenas de testemunhas sobre o Golodomor para a Comissão Especial dos EUA. Ao reunir os relatos, eles conseguiram formar uma imagem holística e minimizar o fator subjetivo. Estas memórias provaram que o Golodomor foi um genocídio da nação ucraniana. No entanto, muitas questões ainda estão abertas aos pesquisadores e muitos documentos e arquivos estão inacessíveis.

Após o colapso da União Soviética, a maior parte dos documentos de arquivo relacionados às repressões da década de 1930 acabaram em Moscou. Existem inúmeros documentos, testemunhos e, muito provavelmente, informações sobre o número real de mortos pela fome. Todas estas informações são necessárias para compreendermos plenamente o crime cometido em 1932-1933 pelo regime totalitário comunista de Stalin.

Vítimas da fome na região de Kharkiv, 1933. Foto da Coleção do Cardeal Theodor Innitzer (Arquivo da Diocese de Viena). Foto tirada pelo engenheiro A. Wienerberger. As fotografias foram fornecidas por Samara Pearce, bisneta de A. Wienerberger.

O Golodomor não foi um genocídio

O artigo 2.º sobre a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio das Nações Unidas diz:

Entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como:

(a) assassinato de membros do grupo;

(b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo;

(c) submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial;

(d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;

(e) transferência forçada de menores do grupo para outro.

A política adotada pela União Soviética no território da Ucrânia foi dirigida precisamente contra os ucranianos, e a maioria dos ucranianos eram aldeões. Nenhum outro grupo nacional da URSS sofreu tais perdas. Em nenhum outro lugar, exceto nas áreas onde os ucranianos viviam em menor número, tais métodos foram usados. As decisões da liderança máxima da URSS, registros médicos, registros de óbitos, relatos de testemunhas e centenas de outros documentos podem comprovar.

Em 28 de Novembro de 2006, o Conselho Supremo da Ucrânia adotou a Lei “Sobre o Golodomor de 1932-1933 na Ucrânia”, qualificando o Golodomor como genocídio do povo ucraniano. Em maio de 2009, o Serviço de Segurança da Ucrânia abriu o processo “Sobre a perpetração do genocídio em 1932-1933”.

A investigação provou que a liderança da União Soviética pretendia destruir parte da nação ucraniana, o que é fundamental para provar a natureza genocida do crime. A conclusão foi a seguinte: a intenção pode ser provada com base nos fatos e circunstâncias relevantes.

Pela resolução do Tribunal de Recurso de Kyiv de 13 de janeiro de 2010, ficou provado que o Golodomor de 1932-1933 na Ucrânia foi:

– planejado para suprimir o movimento de libertação nacional ucraniano e impedir a criação de um Estado ucraniano independente.

– cometido através da apreensão forçada de todos os alimentos dos aldeões ucranianos e da privação do seu acesso aos alimentos. Isto é, a criação artificial de condições que levou à destruição física de uma parte específica do grupo nacional ucraniano — os aldeões ucranianos.

– realizado como uma das etapas de uma operação especial contra parte do grupo nacional ucraniano como tal. Foi a nação ucraniana, não as minorias étnicas, que foi objeto de autodeterminação para a construção de um Estado, e só ela poderia exercer o direito à autodeterminação consagrado na Constituição de 1924 da URSS, deixando a URSS e formando um estado ucraniano independente.

– organizado pela liderança máxima do regime comunista soviético, entre os quais sete pessoas, listadas no caso, desempenharam um papel particularmente importante e ativo na prática do crime.

A decisão do Tribunal nomeou sete pessoas importantes que foram culpadas pelo Golodomor:

“O órgão de investigação pré-judicial estabeleceu, com totalidade e abrangência, a intenção explícita de Stalin (nascido Dzhugashvili), Molotov (nascido Skryabin), Kaganovich, Postyshev, Kosior, Chubar e Khatayevich de exterminar uma parte do grupo nacional ucraniano (e não qualquer outro grupo), e está objetivamente provado que esta intenção dizia respeito ao grupo nacional ucraniano como tal.”

O Tribunal deu atenção especial ao efeito retroativo da lei. Com base no disposto no art. 7.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos de 1950 e no art. 1.º da Convenção das Nações Unidas de 1968 sobre a Não Aplicabilidade de Limitações Estatutárias a Crimes de Guerra e Crimes contra a Humanidade, o tribunal reconheceu que “não havia proibições legais à aplicação da Parte 1 do Art. 442 do Código Penal da Ucrânia no passado” às ações de pessoas que cometeram o crime de genocídio de 1932-1933 na Ucrânia. Assim, no contexto jurídico a nível estatal na Ucrânia, o Golodomor é reconhecido como um crime contra a humanidade e um genocídio do povo ucraniano.

Vítima do Golodomor. Kharkiv, 1933. Fotos da Coleção do Cardeal Theodor Innitzer (Arquivo da Diocese de Viena). Foto tirada pelo engenheiro A. Wienerberger. As fotografias foram fornecidas por Samara Pearce, bisneta de A. Wienerberger.

Juntamente com a Ucrânia, 34 outros países reconhecem o Golodomor como genocídio: Estônia, Austrália, Canadá, Hungria, Cidade do Vaticano, Lituânia, Geórgia, Polônia, Peru, Paraguai, Equador, Colômbia, México, Letônia, Portugal, Bélgica, Brasil, Bulgária, Croácia, Tchéquia, França, Alemanha, Islândia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Moldova, Países Baixos, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Reino Unido e Estados Unidos.

“Este não é simplesmente um caso de assassinatos em massa. É um caso de genocídio, de destruição, não apenas de indivíduos, mas de uma cultura e de uma nação. Se fosse possível fazer isso mesmo sem sofrimento, ainda seríamos levados a condená-lo, porque a mentalidade, a unidade de ideias, de língua e de costumes que formam o que chamamos de nação, constitui um dos mais importantes de todos os nossos meios de civilização e progresso.”

Raphael Lemkin, “Genocídio Soviético na Ucrânia”

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Autora:

Yaroslava Bukhta

Cinegrafista:

Pavló Pashko

Oleg Sologub

Produtora:

Karyna Piliugina

Diretor:

Mykola Noçok

Montador:

Yúlia Rublevska

Editora de foto:

Kátia Akvarelna

Tradutor:

Anna Bogodyst

Editor de tradução:

Guilherme Calado

Coordenadora de Ukraїner International:

Yulia Kozyryatska

Editora Chefe do Ukraïner Internacional:

Anasstacía Marushevska

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

Editora Chefe:

Anna Yablutchna

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