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Em 2022, uma série de histórias intitulada “Ouvir a Voz de Mariupol” foi acrescentada aos projetos do Ukraïner. Desde o início até ao fim da batalha pela cidade, partilhámos histórias de pessoas que conseguiram escapar à ocupação. Em fevereiro de 2024, com Mariupol ainda sob o controlo do exército russo, os heróis do “Ouvir a Voz de Mariupol” contam como as suas vidas mudaram nos dois anos que se seguiram ao início da invasão em grande escala. Este artigo continua a história de Mariia Kutniakova, a sua vida na Lituânia, a sua compreensão do trauma e a sua saudade de Mariupol.

Antes da agressão russa em grande escala, Mariia desenvolvia ativamente a vida cultural local. Durante cerca de seis anos, trabalhou como atriz no Teatro Folclórico de Mariupol “Teatromania” e no centro cultural e turístico “Vezha”. Fazia visitas guiadas, contando a história da cidade – quatro gerações da sua família viveram em Mariupol. Neste momento, trabalha como freelancer, participa em projetos na Ucrânia e na Lituânia e é comunicadora da ONG “Shtuka”, que, antes da invasão total, estava envolvida em projetos educativos e culturais em cidades da Donéchchyna, Slobozhánshchyna e Pryazóvia. Com o passar do tempo, a organização adaptou o seu trabalho às necessidades da época, prestando ajuda humanitária e militar nessas regiões até à ocupação parcial de algumas delas. Atualmente, a equipa da “Shtuka” planeia regressar gradualmente à sua prioridade anterior: os projetos culturais e educativos.

Mariia e a sua mãe, irmã e gato permaneceram em Mariupol ocupada até ao final de março de 2022. Já o seu tio ficou mais alguns meses devido aos constantes bombardeamentos perto de “Azovstal”. A jovem visitou o tio em 16 de março, precisamente no dia em que as tropas russas lançaram uma bomba sobre o teatro da cidade, onde as pessoas se refugiavam. Depois de encontrar os seus familiares sobreviventes escondidos nos abrigos antibomba do teatro, Mariia decidiu sair da cidade o mais depressa possível. No dia seguinte, ela e a família partiram para a aldeia de Melekine, a cerca de 20 km de Mariupol, e, mais tarde, passaram 12 dias a viajar até Lviv. Aí, o Teatro de Marionetas de Lviv tornou-se a sua casa temporária. Na altura, muitos teatros em regiões distantes da linha da frente eram utilizados como instalações para pessoas deslocadas e centros de ajuda humanitária.

Mudança para a Lituânia
Em Lviv, a família de Mariia começou a procurar alojamento para não ter de estar sempre na casa de amigos. Pensavam que a cidade no oeste da Ucrânia era o fim da sua evacuação de Mariupol. No entanto, não conseguiram encontrar um apartamento. Em meados da primavera de 2022, chegavam constantemente deslocados internos das zonas da linha da frente e das zonas próximas da linha da frente, pelo que as opções disponíveis eram cada vez menores. Além disso, não havia muitos proprietários de apartamentos dispostos a aceitar inquilinos com um gato.

Mais tarde, Mariia conheceu voluntários da Lituânia que estavam a transportar ajuda para os civis e soldados ucranianos. No Teatro de Marionetas de Lviv, Mariia conheceu um voluntário chamado Žilvinas Svitojus. Este ofereceu-lhes, a ela e à família, a possibilidade de se mudarem para a sua casa em Vilnius durante alguns meses para recuperarem, se sentissem necessidade, antes de regressarem à Ucrânia. Mariia aceitou. Um argumento adicional foi o tratamento da sua irmã mais velha, que é deficiente, pois a Lituânia fornecia medicamentos gratuitos.

— Ficámos na casa deste voluntário, encontrámos imediatamente um apartamento e estamos a arrendar. Eu trabalho online na Ucrânia como trabalhadora independente, ou seja, como profissional. Recebemos este apoio médico porque eles (a família da Mariia – ed.) são vulneráveis. Calculei quanto me iria custar na Ucrânia e apercebi-me, naquele momento, que ficaria na Lituânia enquanto tivesse este apoio médico.

Enquanto preparava os documentos para a cirurgia e reabilitação da sua mãe, Mariia e os seus amigos tentavam simultaneamente evacuar o seu tio de Mariupol. Ele vivia perto de “Azovstal”, onde os combates eram acesos, sendo impossível chegar a esta parte da cidade em abril de 2022. Mariia conta que, durante um mês e meio, não souberam se o seu tio estava vivo e que no outro mês e meio o tentaram tirar de lá. Só em junho desse ano é que o seu tio conseguiu partir para a Lituânia através do território da Rússia. A longa viagem e a ocupação pioraram o seu estado de saúde, marcado pelo desenvolvimento de problemas cardíacos e pulmonares. Os médicos lituanos planearam operar o homem, mas primeiro ele teve de passar cerca de um ano a recuperar o peso e o equilíbrio hídrico. A operação foi bem sucedida, mas alguns dias mais tarde o tio sofreu uma tromboembolia.

— Fizemos a cremação aqui. Quando Mariupol for desocupada, planeamos enterrá-lo (o tio de Mariia – ed.) com os nossos familiares no cemitério, ou seja, trazê-lo de volta para casa. Eu digo sempre que, de facto, os russos o mataram.

De acordo com as observações de Mariia, o agravamento de doenças crónicas ou fraturas súbitas não são invulgares nos ucranianos, especialmente nos que viveram sob ocupação: o stress constante, a subnutrição, a hipotermia e a falta de água potável esgotaram os seus corpos. Para além do tio, a mãe de Mariia também precisou de ser operada, pois caiu no meio da rua e partiu o colo do fémur, durante a sua segunda semana em Vilnius. No hospital onde estava a recuperar, havia muitos ucranianos com ferimentos semelhantes. Mariia aponta:

— Muitos residentes de Mariupol, mesmo aqueles que não são idosos, estão a morrer de doenças crónicas que contraíram em Mariupol durante o cerco da cidade. Conheço muitas pessoas, na casa dos 50 anos, que apanharam uma pneumonia na cave, não puderam ser tratadas e morreram das suas consequências na Ucrânia ou na Europa.

Para Mariia, a ocupação provocou problemas de sono e de concentração, razão pela qual continua a trabalhar a tempo parcial – um horário de 8 horas seria demasiado para ela. Também procurou ajuda psicológica. Está a aprender a cuidar de si e dos seus entes queridos, apesar de haver alturas em que não lhe apetece fazer nada. Mariia diz que as emoções difíceis estão a passar e que está pronta para fazer doações e voltar a odiar de forma ativa os russos. Nas primeiras semanas após a sua mudança, para além dos problemas de saúde, os aviões fizeram recordar a Mariia a sua experiência em Mariupol – o aeroporto de Vilnius situa-se no centro da cidade. Só com o tempo conseguiu convencer-se de que ali não havia forças aéreas russas e, se houvesse, estas seriam destruídas pela defesa aérea.

— De vez em quando, os caças da NATO sobrevoam a cidade para patrulhar as fronteiras. Compreendo que estão a voar algures muito longe, mas voam às quatro da manhã e toda a cidade os ouve. Às vezes acordo e vejo a acenderem-se as luzes da casa do outro lado da rua, por isso não sou a única.

Adaptação a Vilnius

Nos 2.5 anos de residência de Mariia em Vilnius, é difícil lembrar-se de um sítio onde não tenha encontrado alguém da Ucrânia: um café, um balcão de correios, um supermercado, etc.. Os ucranianos são atualmente a maior comunidade nacional na Lituânia, de acordo com o Departamento de Migração, em dezembro de 2023. Nessa altura, havia cerca de 85 000 ucranianos no país. Mariia diz, em tom de brincadeira, que é cada vez mais difícil encontrar alguém com quem praticar lituano.

— Por vezes, sinto que estou apenas num distrito de Vilnius (na Ucrânia – ed.). Leio as notícias ucranianas, trabalho com ucranianos, falo com ucranianos aqui. Estou sempre a ouvir estas histórias – ucranianos que se esqueceram da Ucrânia, etc.. Aqui não é assim. Aqui, por vezes, quando estou rodeada de ucranianos, começo a discutir algumas notícias lituanas: “Oh, vai haver uma celebração do Dia de Vilnius, onde é que vocês vão?”; e eles olham para mim, tipo: “Não, não, agora vamos analisar os resultados de Davos para a Ucrânia. Não vamos falar do aniversário de Vilnius”.

Mariia observa que uma relação tão estreita entre ucranianos e lituanos após o início da agressão russa em grande escala ajuda a eliminar os preconceitos mútuos impostos, principalmente, pelo próprio país agressor:

— Por exemplo, antes de chegar, também eu tinha uma ideia bastante soviética da Lituânia, da qual só me apercebi mais tarde. E os lituanos também tinham a sua própria ideia dos ucranianos. E quando esta situação aconteceu, eles também ficaram em parte chocados, agradavelmente chocados connosco. E é por isso que eles também questionam: quem são vocês e o que são vocês?

Mariia assinala que o passado histórico ajuda a compreender melhor o outro: os territórios da Ucrânia e da Lituânia fizeram parte do Grão-Ducado da Lituânia e da Comunidade Polaco-Lituana, e posteriormente do Império Russo e da URSS. Ambos os países resistiram ao regime de ocupação comunista, acabando por deixar de ter o estatuto de repúblicas soviéticas ainda antes do colapso da União Soviética, e passaram por um processo de descolonização. Mariia também considera que o folclore não é menos importante.

—  Há um ano que a minha mãe dá palestras sobre a cultura e o folclore ucranianos; ela lecionava isso em Mariupol. Este tema é importante porque, depois de 24 de fevereiro, muitos ucranianos descobriram que não sabiam nada sobre a Ucrânia. E é interessante para os lituanos comparar o que lhes aconteceu a eles e o que nos aconteceu a nós.

Pode-se aprender sobre folclore ucraniano com a mãe de Mariia em duas línguas: a oradora fala ucraniano e a tradutora fala lituano. Não só ucranianos e lituanos, mas também representantes de outras nacionalidades estão ansiosos por ouvir as palestras. Entre os convidados que mais a impressionaram, recorda um no seguinte episódio:

— Era a última palestra, e um chinês com uma vyshývanka (camisa bordada ucraniana – ed.) entrou e falou em ucraniano. E nós ficámos, tipo: “Oh, meu Deus!”. E ele disse: “Resolvi estudar a língua ucraniana, a cultura ucraniana, porque é um país tão inspirador, uma nação tão inspiradora.”

A gata de Mariia também começou a comunicar mais de perto com os habitantes locais. Quando saiu de Mariupol, perdeu cerca de um quilo de peso, o que foi notório na sua constituição. Agora que está mais calma e se sente segura, a amiga de quatro patas começou a viver a sua melhor vida, afirma a dona:

— Vivemos num prédio onde há muitos gatos. Ela anda pelo prédio e mia com os gatos através das portas. Aqui temos uma varanda não envidraçada. E na varanda vizinha também vive uma gata. Quando o tempo está bom, sentam-se na varanda em frente uma da outra. Ela agora tem amigos lituanos.

O desejo de regressar a casa

Embora Mariia tenha conseguido encontrar um novo alojamento, trabalho e apoio das comunidades ucraniana e lituana, não tenciona ficar permanentemente. Acredita que definitivamente viverá na Ucrânia e que não fará apenas algumas viagens de negócios. O seu telemóvel ajuda-a a manter-se em contacto com a sua terra natal, nem que seja pelo tempo, pois mostra o clima em Vilnius e em Mariupol.

— Não consigo habituar-me ao clima aqui (em Vilnius – ed.), porque é mais frio, mais húmido, menos solarengo; estou sempre a pensar como é em Mariupol. Vejo que em Mariupol está mais calor, em Vilnius está menos, e penso – que se fod*m os russos. Tenho muitas saudades do mar. Sou uma daquelas pessoas que nunca abandonam a praia no verão. Depois do trabalho, mesmo quando não vou nadar, vou para a praia; ou antes do trabalho, vou para a praia.

No entanto, é difícil prever se Mariia voltará a viver em Mariupol – nem sequer é possível planear mais do que três dias. É mais provável que ela possa visitar a cidade e participar em iniciativas de voluntariado para a reconstruir. A sua casa foi completamente destruída pelos bombardeamentos russos e as autoridades de ocupação utilizam o apartamento da mãe, que resistiu parcialmente, para as suas próprias necessidades – os russos não consideram válidos os documentos de propriedade ucranianos. Mariia foi informada deste caso pelos residentes de um edifício residencial em Mariupol – viviam lá trabalhadores da construção civil do Tajiquistão:

— Levaram tudo o que havia no apartamento. E 20 pessoas viviam no apartamento T1 da minha mãe, sem rede de esgotos. Mas o pior foi que fizeram uma fogueira na cozinha e cozinharam pilaf num caldeirão.

Os outros “vizinhos” Mariia conheceu pessoalmente. Uma desconhecida no Viber pediu acesso ao apartamento da sua mãe em Mariupol para o serviço de gás. Algumas mensagens depois, descobriu que era a mulher de um soldado russo que vivia no prédio há vários meses e que se queixava de ser obrigada a cozinhar numa panela elétrica, pois não havia gás:

— Então, eu disse-lhe: “Nesse caso, vai lá para fora, faz uma fogueira e cozinha”.

Mariia fica igualmente magoada com a forma como a Rússia propaga a imagem de Mariupol nos meios de comunicação social: salienta o bom clima, o mar e os apartamentos a preços acessíveis, ignorando intencionalmente a vida real dos ucranianos sobreviventes. A imagem distorcida da cidade não alastra apenas entre os residentes comuns da Rússia. Mesmo os cidadãos ucranianos, por vezes, não compreendem totalmente a brutalidade da ocupação:

— Em Vilnius, na véspera de Ano Novo, muitas pessoas dos territórios não ocupados foram à Ucrânia visitar as suas famílias. Então, perguntaram-me: “Vais passar o Ano Novo na Ucrânia?” [Eu disse:] “Eu sou de Mariupol, para onde é que vou?”

Segundo Mariia, a sociedade mundial está cada vez mais habituada a uma guerra em grande escala e está menos disposta quer a prestar ajuda quer a manifestar empatia pelos refugiados ucranianos. Entende que, como resultado, alguns países começarão a encorajar o regresso a casa dos refugiados da Ucrânia. No entanto, existem também aqueles que já optam conscientemente pelo retorno ao seu país para se juntarem ao exército, fazerem voluntariado, reconstruírem o país e apoiarem a sua economia a partir do interior:

— Lembro-me sempre da minha avó, que também foi evacuada durante a Segunda Guerra Mundial e viveu fora da Ucrânia durante vários anos. E também digo a mim própria que vou ter a experiência de viver na Europa, numa maravilhosa e bela Vilnius, que vou recordar com carinho, amor, etc.. Mas compreendo na perfeição, especialmente depois de ter vivido na Europa, que há uma clara perceção de que a Ucrânia é o melhor país do mundo, os ucranianos são o melhor povo, [está aqui] a melhor cozinha, o melhor sector de serviços, tudo é melhor.

Material preparado por

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Entrevistadora,

Autora da Capa:

Khrystyna Kulakovska

Autora:

Viktória Didkovska

Tradutora:

Anna Bogodyst

Editor de tradução:

Guilherme Calado

Coordenadora de Ukraїner International:

Yulia Kozyryatska

Editora Chefe do Ukraïner Internacional:

Anasstacía Marushevska

Editor de foto,

Coordenador de fotógrafos:

Yurii Stefaniak

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

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