Descolonização da cultura: artistas ucranianos banidos e apropriados pela Rússia

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Durante séculos, a Ucrânia foi efetivamente uma colónia da Rússia, pelo que a sua cultura se desenvolveu em condições extremamente difíceis e dramáticas. Inúmeras perseguições, proibições e repressões por parte do “grande irmão” obrigaram os artistas ucranianos a escolher: permanecer fiéis à sua cultura, apesar dos riscos para as suas carreiras e mesmo para as suas vidas; servir o império, esquecendo gradualmente as suas raízes; ou manobrar entre estas duas estratégias. O seu destino dependia desta escolha. É por isso que há uma série de artistas ucranianos cujas biografias e obras ainda precisam de ser devidamente repensadas, sendo sobretudo necessário verificar que marcas a Rússia lhes deixou.

A consciência da complexidade da história, a identificação de interligações e significados, a reflexão e a aceitação ajudam a ultrapassar os traumas coloniais. Por outras palavras, isto constitui a descolonização, e a arte ucraniana precisa dela tanto quanto outras áreas da vida pública. No âmbito do projeto especial “Descolonização”, o Ukraїner, juntamente com especialistas de várias áreas, explica como a Rússia escravizou literal ou mentalmente os ucranianos em diferentes épocas e como os ucranianos podem finalmente cortar todos os laços com ela. Esta série multimédia foi inaugurada com um artigo sobre a restituição de bens culturais roubados. O artigo que está a ler centra-se nos artistas ucranianos banidos ou apropriados pela Rússia, ou cujos talentos e glória foram abafados por ela.

Juntamente com o Projector Institute e a diretora criativa do Instituto Ucraniano, Tetiana Filevska, falamos de algumas destas figuras cujas biografias ilustram o processo de colonização cultural. Conhecê-los melhor ajudar-nos-á a compreender o significado destes artistas na cultura ucraniana e mundial, bem como a ilustrar a urgência da descolonização.

Causas históricas da colonização cultural

Em 1721, o reino de Moscovo foi proclamado Império Russo. Ao contrário dos impérios ocidentais clássicos, não tinha colónias ultramarinas e não dividia os seus habitantes com base na raça. A Rússia colonizou os vizinhos que considerava incivilizados. Mais de 300 anos depois, as narrativas russas pouco mudaram. A Rússia continua a tentar negar aos ucranianos e a outros povos o direito ao seu próprio Estado, cultura, língua e identidade. A Circular de Valuev e o Decreto de Ems, que proibiram quer a língua ucraniana quer a edição de livros, as numerosas repressões contra a sociedade intelectual ucraniana e o estigma da inferioridade influenciaram a forma como os ucranianos são atualmente.

A política colonial da Rússia prosseguiu durante a era soviética. O seu objetivo é descrito por Tetiana Filevska, diretora criativa do Instituto Ucraniano: Foi concebida para restringir e controlar o desenvolvimento da cultura nas colónias, uma esfera onde, obviamente, se forma e através da qual se comunica a identidade de uma determinada comunidade de pessoas, povo, nação. É por isso que a cultura é uma coisa “perigosa”. Ao mesmo tempo, um império alimenta-se sempre das suas colónias. Usurpa e esgota os recursos, incluindo os talentos. É claro que o império [russo] tinha como objetivo levar para a sua metrópole os mais talentosos, os mais inteligentes, os mais progressistas, e esta história repetiu-se de geração em geração. Mesmo durante os anos da independência da Ucrânia.

A destruição intencional dos intelectuais ucranianos constitui uma perda irreparável para a cultura ucraniana e mundial. A vida criativa dos artistas e muitas vezes a sua própria vida foram dramaticamente alteradas ou simplesmente interrompidas. Foi por causa do Império Russo e da União Soviética que deixaram de escrever textos, pintar, fazer música, encenar espetáculos de teatro ou criar esculturas.

Atualmente, estamos naquela que poderá ser a fase mais quente da guerra com a Rússia e, para os ucranianos, esta guerra é, em particular, pela descolonização da sua cultura. Por conseguinte, o património cultural exige uma investigação e um repensar ainda mais cuidadosos para evitar que o inimigo o distorça e se aproprie dos artistas e das suas obras.

Ao repensar ou mesmo introduzir um artista no discurso ucraniano, é necessário compreender quer os contextos socioculturais em que viveu quer os significados que criava ou alimentava e aos quais se opunha. Existem narrativas imperiais sobre a Ucrânia na sua obra? Como é que ele se identificava e se o fazia sob pressão? Quais eram os seus pontos de vista e decisões de vida? É necessário perceber a figura de qualquer artista com este contexto em mente, porque a arte, por muito que se deseje, não pode isolar-se completamente das circunstâncias sociopolíticas.

Les Kurbas e Mykola Kulish: artistas ucranianos banidos pelas autoridades soviéticas

Quando se referem artistas banidos, a geração do Renascimento Executado (década de 1920 – início da década de 1930) é muito significativa. Cerca de 30.000 figuras culturais ucranianas foram sujeitas à repressão estalinista, na década de 1930. A União Soviética, herdeira do Império Russo, fez tudo para fazer desaparecer a arte ucraniana. Houve repressões antes e depois de Estaline, mas foi durante o seu governo que atingiram uma grande escala. Toda uma geração de artistas foi assassinada. As suas obras foram proibidas e os seus autores apelidados de “nacionalistas burgueses” e “inimigos do povo” ou simplesmente esquecidos. Não havia lugar para a arte ucraniana no império.

Renascimento Executado
Geração literária e artística dos anos 20 e início dos anos 30, do séc. XX, na Ucrânia, que produziu obras de grande valor artístico nos domínios da literatura, pintura, música e teatro, e que foi destruída pelo regime totalitário estalinista. Les Kurbas e Mykola Kulish contam-se entre as vítimas dessa repressão.

O edifício Slovo (Palavra), em Kharkiv, um dos símbolos do Renascimento Executado. Foto proslovo.com

Les Kurbas e Mykola Kulish estão entre os artistas mais proeminentes da sua época. A dupla criativa tornou-se a personificação do novo teatro ucraniano. Ambos se interessavam pelo drama europeu contemporâneo e pelo expressionismo. O drama moderno renunciou à palavra-ação, mostrando em vez disso a existência da alma e os seus movimentos. Os artistas recusaram-se a seguir a tradição anterior e o complexo de inferioridade em prol da liberdade artística. Utilizaram as máscaras não literalmente como um objeto, mas de forma a levar o espectador a pensar e a sentir através das imagens – o que também seguia a tradição europeia teatral. O teatro experimental de Kurbas, “Berezíl”, que se mudou de Kyiv para Kharkiv, em 1926, era exatamente assim. Foi aí que os artistas se conheceram. A sua aparência diferia imenso: se o refinado Kurbas usava fatos de corte inglês, o algo desajeitado Kulish estava habituado a usar roupas em segunda mão. No entanto, os dois eram unidos por um amor fanático pelo teatro e pela atenção às realizações do novo drama e do expressionismo.

Teatro “Berezíl”
Les Kurbas criou este teatro experimental modernista ucraniano, onde tentava sintetizar as tradições nacionais do teatro ucraniano com as formas mais recentes do teatro europeu.

Les Kurbas, encenador, ator, teórico do teatro, dramaturgo, publicista e tradutor ucraniano. Imagem de domínio público.

Mykola Kulish, escritor, encenador e dramaturgo ucraniano. Imagem de domínio público.

O “Berezíl” estava constantemente a experimentar, a acompanhar os tempos e a evitar o caminho do teatro tradicional, etnográfico e quotidiano. Les Kurbas guiou-se pelas tendências europeias e, curiosamente, recusou-se a fazer uma digressão por Moscovo. Juntamente com Mykola Kulish, encenou as suas maiores obras no palco do “Berezíl”: “Myna Mazáilo”, “Malaquias do Povo” e “Maclena Graça”. Estas foram alvo de admiração e de uma crítica soviética devastadora.

Peça “Maclena Graça” no teatro “Berezíl”. Foto: openkurbas.org.

“Maclena Graça” é simbólica. Esta peça levanta a questão do destino do artista na sociedade, uma questão muito pertinente na altura. A encenação era extremamente sombria, nem sequer deixando o sol para onde a personagem principal Maclena corre no texto original. Foi a última encenação de Les Kurbas no “Berezíl” e a última peça de Mykola Kulish. Ambos os artistas foram, pouco depois, presos e mortos a tiro, em 1937, em Sandarmókh, havendo rumores de que a mesma bala os matou.

Sandarmókh
Zona florestal da República da Carélia (Rússia). Na década de 1930, o NKVD da URSS fuzilou mais de 9.000 pessoas de 58 nacionalidades. O fuzilamento em massa da elite cultural e científica ucraniana teve lugar entre 27 de outubro e 4 de novembro de 1937. O local do crime foi descoberto em 1997.

Estes acontecimentos terríveis devem ser recordados porque também pertencem à memória nacional, uma componente importante da identidade que o pseudo-império russo tenta destruir. Atualmente, só podemos especular sobre o que teria sido a cultura ucraniana se o governo soviético não tivesse destruído estes e outros grandes artistas. Tetiana Filevska reflete:

Se imaginarmos que os artistas do Renascimento Executado sobreviveram, tenho a certeza de que hoje não teríamos problemas em compreender porque é que precisamos de cultura. A nossa cultura teria sido forte, reconhecida, desejada pelo mundo e desenvolvida a nível industrial, financeiro e promocional.

A URSS esforçou-se para que o legado de Les Kurbas e Mykola Kulish não fosse mencionado no país. As autoridades consideravam ambos os artistas “perigosos”, encarando as suas atividades como uma ameaça ao regime. Por essa razão privaram-nos da liberdade e da vida. Em 1933, Les Kurbas não só foi privado do título de Artista Popular da República, como também foi expulso do seu próprio teatro. E Mykola Kulish foi expulso do partido, as suas obras “Malaquias do Povo” e “Myna Mazáilo” foram proibidas e, em 1934, foi preso e acusado de pertencer a uma organização terrorista.

Além disso, nos anos 30, o experimentalismo vanguardista foi substituído pelo realismo socialista, imposto como o único estilo artístico correto, pelo que a produção artística dos anos 20 se tornou “inaceitável”.

Realismo socialista
O realismo socialista foi um estilo pseudoartístico, o único oficialmente autorizado na URSS entre 1934 e 1980. Os artistas tinham de servir os interesses do partido e seguir a sua doutrina ideológica. Caso retratassem com veracidade a realidade soviética, eram acusados de propaganda antissoviética e reprimidos.

Felizmente, as autoridades soviéticas não conseguiram acabar com o interesse dos ucranianos por estas figuras artísticas e pelo seu trabalho. O legado de ambos continua a ser relevante, pelo que os contemporâneos recorrem ao mesmo. Também asseguram que a sua memória é devidamente honrada. Por exemplo, mais de dez povoações na Ucrânia têm o nome de Les Kurbas, um teatro académico em Lviv tem o seu nome e existe um centro em Kyiv com o mesmo nome. Em 2022, foi publicada a mais completa coleção de textos de Les Kurbas até à data, “Filosofia de Kurbas” (uma reedição do livro de 2001). Um teatro em Kherson e ruas em diferentes cidades da Ucrânia receberam o nome de Mykola Kulish e a Administração Regional de Kherson instituiu o Prémio Literário Regional com o nome de Mykola Kulish.

Mykola Hohol e Anatol Petrytskyi: artistas ucranianos apropriados pela Rússia

Antes do Império Russo invadir a Ucrânia e destruir a sua soberania, a Ucrânia tinha uma vida cultural mais desenvolvida e intensa. Tetiana Filevska fala-nos dessa época:

— Tínhamos academias, artistas, uma vida musical maravilhosa, etc., mas o reino de Moscovo não tinha tudo isto. E, para construir a grandeza imperial, tudo o que havia de melhor, tudo o que havia de mais desenvolvido, tinha de se deslocar para o centro, de sair da província em que a Ucrânia se transformou. Este desejo de se apropriar de tudo o que era ucraniano baseia-se no sentimento de inferioridade que existia no reino de Moscovo em relação à Ucrânia. Ao mesmo tempo, quem fundou todas estas instituições em Moscovo? Uns Feofanos Prokopovych.

Feofanos Prokopovych
A imagem coletiva de figuras educativas e religiosas altamente qualificadas da Ucrânia que não só serviram os interesses do Império Russo, como estiveram envolvidas na criação dos aspetos fundamentais da sua existência. Feofán Prokopovych, em particular, foi um teólogo, filósofo, cientista, religioso, pedagogo e estadista, escritor e reitor da Academia Kyiv-Mohyla (1711-1716). Foi um apoiante de Pedro, o Grande, elogiando-o, a ele e às suas políticas, nos seus escritos; sugeriu a versão grega do nome Rus para renomear o Império de Moscovo; contribuiu para a junção definitiva da Igreja e do Estado no Império Russo; viveu em São Petersburgo, onde foi ordenado bispo e conselheiro de Pedro, o Grande, e fundou ou participou no desenvolvimento de várias instituições religiosas ou científicas.

Outro grande desafio para os artistas ucranianos (tanto na Rússia czarista como na URSS) era a questão da identidade. Frequentemente foram, ou ainda são, rotulados de forma pouco clara: ora ucranianos, ora russos. Por vezes, trata-se de um problema do discurso chauvinista russo que pretende apropriar-se do artista. No entanto, há figuras ambíguas na história da Ucrânia. Por exemplo, a quem pertence Mykola Hohol, um ucraniano que trabalhou para o Império Russo? Tetiana Filevska constata dificuldades semelhantes na sua autodefinição:

— É óbvio que a identidade é fluida e heterogénea. Uma pessoa pode redefinir-se durante a sua vida e ser simultaneamente portadora de múltiplas identidades: étnica, cultural, política, social. A apropriação imperial russa de figuras culturais é problemática na medida em que elimina esta complexidade e define apenas uma identidade, a russa, como dominante. Uma abordagem descolonizadora permite que esta complexidade identitária se manifeste.

Retrato de Mykola Hohol, da autoria de Fedir Moller, 1840. Fonte: Galeria Tretiakov.

Mesmo no seio da comunidade literária ucraniana, as opiniões sobre Mykola Hohol variam. Para uns é um escritor que fez uma escolha “errada” e pagou por isso, para outros é uma criatura do seu tempo, e para alguns é mesmo um crítico secreto do império. Cada uma das versões baseia-se em determinados factos da biografia do artista, das suas obras e das suas cartas. Deste modo, é difícil responder para qual destas teorias se inclinava mais a “identidade dividida” de Hohol.

Ainda assim, não devemos negar a importância de Mykola Hohol para a cultura ucraniana e privá-lo do seu lugar no património ucraniano. Escritores e figuras culturais ucranianas proeminentes, como Taras Shevchenko, Panteleimon Kulish e Mykhailo Drahomanov, consideraram-no sistematicamente um escritor ucraniano que só escrevia em russo. Sim, é possível encontrar exemplos de chauvinismo russo em Hohol, mas essa foi obviamente a sua estratégia de sobrevivência e adaptação no império. O escritor não era ucrainófobo. Ao longo da sua vida, investigou a nossa história e recolheu folclore, o que se refletiu nas suas obras. Por exemplo, o escritor e crítico cultural Yevhen Malaniuk admirava esta parte da sua novela “Noite de maio, ou A Afogada”: “Conhece a noite ucraniana? Oh, não conhece nada a noite ucraniana! Olhe para ela: a lua está a olhar para baixo a partir do meio do céu. A abóbada infinita do céu abriu-se e expandiu-se ainda mais. Está a arder e a respirar. A terra é banhada por uma luz prateada, e o ar maravilhoso é quente e fresco, respirando tranquilidade e derramando um oceano de fragrâncias. Uma noite divina! Uma noite mágica!”

Pintura "Noite de luar no Dnipro", de Arkhip Kuindzhi, 1880. Fonte: Museu Estatal Russo.

É claro que Mykola Hohol não sonhava incessantemente com o futuro brilhante da nação ucraniana, por isso não deve ser glorificado. Hoje, os russos consideram-no seu: no site da Biblioteca nacional russa, em dezenas de enciclopédias e manuais escolares, na versão russa da “Wikipédia” e, claro, na maioria dos meios de comunicação social russos, ele é “um romancista russo reconhecido como um dos clássicos da literatura russa” ou “um dos maiores escritores da literatura russa”. Mas não existem motivos suficientes para “dar” Mykola Hohol à Rússia. Além disso, segundo Tetiana Filevska, a situação não era fácil para os escritores do império:

— Como resultado da apropriação e da pressão sobre o potencial ucraniano, a Rússia alimentou-se dos talentos que adquiriu. Por um lado, estes foram os recursos que permitiram ao império seguir em frente. Mas, ao mesmo tempo, temos de compreender que a vida nos tempos do império implicava que ou nos adaptávamos e aceitávamos a identidade do colonizador, ou o império trituráva-nos e destruía-nos. O destino dos artistas e a sua influência na cultura russa dependiam desta escolha pessoal.

O país ladrão apenas utiliza discursos tão ambíguos como “escritor russo ou ucraniano” para os distorcer e fazer o que quer. 

Não menos dramático do que Hohol foi o destino do artista Anatol Petrytskyi. Não foi reprimido como muitos dos seus amigos e colegas. No entanto, a União Soviética tomou e destruiu o que há de mais importante para um artista – o seu talento

A capa da revista "Arte Nova" com um autorretrato de Anatol Petrytskyi. Imagem de domínio público.

Aluno de Oleksandra Exter e Vasyl Krychevskyi, Anatol Petrytskyi foi uma verdadeira estrela da arte ucraniana da década de 1920, um génio do vanguardismo ucraniano. O artista experimentou incansavelmente em vários domínios: teatro, pintura, ilustração de livros e trabalho na redação da revista “Feira literária”. As suas obras absorviam o movimento e o ritmo do tempo e tinham também uma alma nacional brilhante. Em 1930, o quadro “Deficientes”, de Anatol Petrytskyi, foi selecionado para a 17.ª Bienal de Veneza, uma exposição internacional de arte contemporânea.

Pintura "Deficientes", de Anatol Petrytskyi, 1924. Fonte: Museu Nacional de Arte da Ucrânia.

Em “Deficientes”, o autor retratou as consequências da Primeira Guerra Mundial. Como tal, na Europa do pós-guerra, esta obra teve uma forte ressonância e foi muito bem sucedida. Após a Bienal, foi incluída numa exposição internacional que viajou para Berlim, Berna, Genebra, Zurique e, até, Nova Iorque. Os colecionadores quiseram comprar o quadro, mas Anatol Petrytskyi acreditava que este deveria regressar à Ucrânia. Isso aconteceu, mas na União Soviética a obra foi percecionada de forma bastante diferente. Havia mudanças ideológicas no domínio da arte: o realismo socialista foi introduzido como o único estilo artístico correto e as autoridades começaram a acusar a arte vanguardista de formalismo e distorção da realidade, o que alegadamente ameaçava a nova sociedade.

O que era permitido na década de 1920 tornou-se uma verdadeira sentença para os artistas na década de 1930. Anatol Petrytskyi vivia e trabalhava no edifício “Slovo”, em Kharkiv, cujos residentes passaram a ser, na sua maioria, vítimas de repressão. Uma série de retratos que fez na década de 1920 apresenta escritores, dramaturgos e artistas que foram exilados em campos de concentração e/ou fuzilados na década seguinte. Não só os artistas desapareceram, como também os seus retratos. De mais de uma centena, restam apenas uma dúzia, que hoje nos recordam a geração destruída de intelectuais ucranianos e a necessidade de preservar a nossa memória histórica.

Retrato de Mykhail Semenko por Anatol Petrytskyi, 1929. Fonte: Museu Nacional de Arte da Ucrânia.

Retrato de Pylyp Kozytskyi por Anatol Petrytskyi, 1931. Fonte: Museu Nacional de Arte da Ucrânia.

Retrato de Hordii Kotsiuba por Anatol Petrytskyi, 1925-31. Fonte: Museu Nacional de Arte da Ucrânia.

O artista escapou miraculosamente à repressão, viveu até aos 70 anos e até se adaptou às novas realidades. No entanto, a tragédia do seu destino é precisamente esta: o artista teve de se negar a si próprio. As pesquisas do vanguardismo, o ritmo, o movimento e o som dos novos tempos, a alma nacional e o reconhecimento mundial, tudo isto ficou na década de 1920. Anatol Petrytskyi deixou o mundo com sentimentos complicados, estava destroçado. Este facto, por exemplo, é claramente evidenciado nas memórias da pintora Tetiana Yablonska, que viveu no edifício “Slovo”, de 1930 a 1944: “Em 1952, visitei Cracóvia e, com o meu fervor de jovem do Komsomol, convenci os abstracionistas de Cracóvia das vantagens do realismo socialista. Quando regressei a Kyiv, falei aos nossos artistas sobre a decadência da cultura ocidental. Petrytskyi aproximou-se de mim e disse: ‘Porque está a falar de algo que não conhece?’. Senti-me envergonhada. No dia seguinte, Petrytskyi ia discursar na reunião do partido e, da tribuna, na qualidade de secretário da organização do partido, criticou o ‘Ocidente podre’ com as minhas palavras do dia anterior”.

Trabalho de Anatol Petrytskyi: esboço de um traje teatral para a ópera “Turandot”, 1928. Fonte: Museu do Teatro, da Música e do Cinema da Ucrânia.

Esboço do traje para a peça "Viy", 1925. Imagem de domínio público.

Sonia Delaunay e Oleksandr Arkhypenko: artistas ucranianos esquecidos no exílio

Vale a pena mencionar outra categoria de artistas: os emigrantes. Nem todos eles sonhavam com a emigração, muitos tiveram de fugir para sobreviver e não deixar que o sistema os destruísse a eles e à sua arte.

Na história da Ucrânia, houve quatro vagas de emigração (1880-1920; 1920-1930; 1940-1954; 1987-2014 ou, segundo algumas fontes, até à atualidade). Os anos de condenação e silenciamento pelas autoridades soviéticas de ucranianos conhecidos e respeitados no mundo colocam aos ucranianos uma outra tarefa de descolonização: compreender o volume total do património cultural ucraniano.

Uma dessas artistas no exílio é Sonia Delaunay. Artista e designer de Odesa, no início do século XX, a sua vida levou-a a Paris e, por isso, nos tempos soviéticos, não se falava oficialmente dela, o seu nome era conhecido apenas por um círculo artístico restrito na União Soviética. Simultaneamente, Delaunay alcançou grande sucesso na França.

Sonia Delaunay diante das suas obras. Imagem de domínio público.

Sonia Delaunay foi a primeira mulher no mundo a ter uma exposição individual no Louvre, o museu de arte parisiense. As suas obras fazem parte das coleções permanentes do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e do Centro Nacional das Artes e da Cultura Georges Pompidou, em Paris. Tornou-se uma das artistas mais influentes do século XX e uma criadora de tendências. Juntamente com o seu marido, Robert Delaunay, criou também o seu próprio estilo de arte, o simultaneísmo, ou orfismo, como lhe chamou o poeta francês Guillaume Apollinaire.

Sonia e Robert Delaunay. Imagem de domínio público.

A dupla defendia que o simultaneísmo é uma representação do movimento da cor na luz, pintando círculos concêntricos coloridos e outras formas geométricas que, devido à sua disposição, criam uma sensação de dinâmica e interação.

Pintura Ritmo, de Sonia Delaunay, 1938. Fonte Centro Georges Pompidou, Paris.

Pintura Composição, de Sonia Delaunay, 1977. Fonte Museu de Arte Moderna de Nova Iorque.

Sonia Delaunay desenvolveu as ideias do simultaneísmo não só nas telas, mas também na arte aplicada. Desenhou roupas e sapatos, fatos de teatro, tecidos e tapetes para fábricas francesas, ilustrou livros, fez cerâmica e vitrais e até decorou automóveis.

A capa da Vogue britânica, em 1925, com o vestido simultâneo de Sonia Delaunay. Imagem de domínio público.

Sim, a artista viveu em França e criou sob a influência dessa cultura, mas, em simultâneo, os historiadores de arte reconhecem unanimemente o toque ucraniano nas suas obras. Ela nunca esqueceu a Ucrânia. No seu livro de memórias, escreveu: “Adoro cores vivas. Estas são as cores da minha infância, as cores da Ucrânia”. Por conseguinte, a obra de Sónia Delaunay é importante também para a Ucrânia, porque é também uma herança ucraniana.

Outro ucraniano bem conhecido é Oleksandr Arkhypenko, escultor, pintor e artista gráfico. É o fundador do cubismo na escultura e o primeiro ucraniano a participar na Bienal de Veneza (1920). O escultor tornou-se famoso em todo o mundo, mas na Ucrânia o seu nome ainda não é muito conhecido.

Cubismo
Movimento de vanguarda nas artes plásticas do início do século XX, caracterizado pelas formas enfaticamente geométricas dos objetos retratados. Oleksandr Arkhypenko adotou dos pintores o modo de trabalhar com a forma, pelo que o seu cubofuturismo é a dinâmica de ângulos, círculos, cones, losangos num ciclo interminável.

Oleksandr Arkhypenko, escultor, pintor e artista gráfico. Imagem de domínio público.

Nascido em Kyiv, Oleksandr Arkhypenko estudou em Moscovo, durante algum tempo, tendo depois ido para Paris, onde continuou a sua formação na Escola de Arte de Paris. Mais tarde, foi para Berlim e depois para os EUA. O escultor entrou no turbilhão da vida artística e, mais ainda, conseguiu mudá-la para sempre. O nome de Oleksandr Arkhypenko é justamente mencionado ao lado de Henri Matisse, Pablo Picasso, Georges Braque, Fernand Leger e Kazimir Malevich. O seu trabalho teve uma grande influência no desenvolvimento da arte modernista no mundo.

Escultura "Mulher a pentear o cabelo", de Oleksandr Arkhypenko, 1915. Fonte: Tate Modern, Londres.

O artista foi um dos primeiros no mundo a utilizar as possibilidades expressivas do “zero”, através da forma, ou seja, trabalhou não só com materiais táteis, mas também com o espaço como ausência de qualquer coisa, que, no entanto, não é desprovido de possibilidades expressivas e pode muito bem complementar quaisquer objetos. Um exemplo marcante é o espaço à vista na escultura “Mulher a pentear o cabelo” (1915). 

Oleksandr Arkhypenko criou um novo tipo de escultura em relevo, a pintura escultural. Também descobriu e fundamentou os princípios da pintura em movimento e concebeu um mecanismo especial e inovador na altura, o arkhypentura. Trata-se de um dispositivo em que um mecanismo especial faz rolar tiras coloridas de modo a formar uma nova imagem, ou seja, a ilusão de movimento. É este o princípio subjacente aos modernos painéis publicitários com imagens variáveis. É difícil imaginar a escultura e o design contemporâneos sem as invenções de Oleksandr Arkhypenko.

Escultura Dançarina Azul, de Oleksandr Arkhypenko, 1913. Fonte Christie's, Londres.

Escultura "Gondoleiro", de Oleksandr Arkhypenko, 1914. Fonte: The Metropolitan Museum of Art.

Apesar do seu sucesso no estrangeiro, Oleksandr Arkhypenko não esqueceu as suas raízes. Participou em exposições com artistas ucranianos e tornou-se membro da Associação de Mestres Independentes da Ucrânia de Lviv. Em 1934, doou a sua escultura “Passado” a um leilão de beneficência para apoiar os seus compatriotas que sofriam de fome.

Oleksandr Arkhypenko no seu estúdio. Imagem de domínio público.

Arkhypenko “regressou” à Ucrânia apenas em 2004, quando se realizou uma exposição das suas obras, em Kyiv. Atualmente, as esculturas do artista podem ser vistas no Museu Nacional de Arte da Ucrânia, em Kyiv, e no Museu Nacional Andrii Sheptytskyi, em Lviv. No entanto, há muito trabalho a fazer para reivindicar (ultrapassar a apropriação cultural) Oleksandr Arkhypenko, de modo a que este possa enraizar-se na cultura ucraniana e deixar de ser visto no estrangeiro como um artista americano ou mesmo russo.

O exemplo de Oleksandr Arkhypenko é apenas um dos muitos que mostram claramente como as condições eram desfavoráveis para os artistas de pensamento livre na URSS e como as autoridades conseguiram isolar o povo soviético do contexto estrangeiro, de tal forma que os nomes dos seus artistas mais proeminentes eram pouco ou nada conhecidos.

Como devem os ucranianos agir atualmente

Podemos apenas imaginar como se teria desenvolvido a cultura ucraniana sem a interferência russa. Kurbas e Kulish teriam certamente feito juntos mais do que uma peça brilhante, Hohol poderia não ter sofrido uma cisão interna e Delaunay teria visitado a Ucrânia e deixado o seu legado artístico. No entanto, nunca o saberemos. A tarefa da Ucrânia é trabalhar esta história e fazer tudo o que for possível para evitar que aconteçam coisas tão horríveis a figuras culturais no futuro. Um passo nesse sentido é compreender as razões pelas quais a nossa cultura tem sido desvalorizada de forma propositada e consistente. Tetiana Filevska nomeia-as:

— Obviamente, a cultura ucraniana, a sua importância e o seu reconhecimento foram subestimados [pela Rússia] de propósito. Embora a Ucrânia tivesse uma cultura muito desenvolvida nos tempos do Estado cossaco, e também na época medieval, atualmente poucas pessoas a conhecem, exceto peritos especializados. Este silêncio e a minimização da sua importância foram feitos para apagar as bases da nossa luta pela soberania. A compreensão dos direitos humanos básicos que se baseiam, entre outras coisas, na identidade e na singularidade de cada um, o direito de sermos nós próprios, de vivermos de acordo com a nossa própria vontade, de acordo com a nossa ideia de vida, de nos realizarmos, tudo isto se baseia no conhecimento de quem somos e de quem são os nossos antepassados.

O mais importante no processo de descolonização é a investigação. É necessário trabalhar com arquivos, efetuar pesquisas, realizar filmes, publicar livros, organizar exposições temáticas, etc., para preencher as lacunas criadas pela colonização. Devem também ser realizados projetos educativos destinados ao grande público. Estes incluem conteúdos nos meios de comunicação social e nas redes sociais, vários festivais e sinais da presença da cultura ucraniana no espaço público, como rotas turísticas ou placas comemorativas. Tetiana Filevska sublinha:

Quando colocamos a cultura em último lugar (em prioridade política, em financiamento), estamos a jogar a favor do inimigo. E esta subestimação tem as suas raízes nessa mesma política imperial: opressão, contenção, desvalorização. Há séculos que eles (os russos – ed.) trabalham para que pensemos assim sobre a nossa cultura, sobre o que temos de mais importante.

O Estado deve apoiar o movimento de descolonização. Tetiana Filevska refere que devem ser criadas condições para a investigação e o debate, bem como um espaço seguro para a coexistência de diferentes dimensões e aspetos da memória:

— A descolonização dá a todos o direito de recordar e perdoar. Por conseguinte, o Estado tem de desenvolver políticas que nos permitam ter um passado, mesmo que esteja ligado a um governo criminoso. É uma tarefa difícil, por isso ninguém a quer fazer, mas não temos escolha. É inevitável.

No entanto, já podemos ver os êxitos da Ucrânia. Desde 2023, por exemplo, Kyiv tem finalmente uma rua com o nome de Oleksandra Exter, uma artista de vanguarda mundialmente famosa, que viveu na cidade durante cerca de 30 anos. E até os museus estrangeiros começam gradualmente a descolonizar os artistas ucranianos. Por exemplo, no mesmo ano, o Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque reconheceu o pintor Arkhip Kuindzhi, de Mariupol, como ucraniano e não como russo.

Pintura de Oleksandra Exter, Ponte.Sevres, 1912. Fonte Museu Nacional de Arte da Ucrânia.

Os ucranianos têm de refletir sobre a sua própria identidade, distinguindo entre o que é deles e o que foi imposto pelo império. Além disso, é muito importante recuperar o que esquecemos ou perdemos. Esta é a única forma de encontrar o verdadeiro significado de uma cultura que foi colonizada.

Material preparado por

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Produtora,

Diretora de produção:

Ksénia Bovkun

Autor:

Zakhar Manukhov

Pesquisadora do tema:

Sofia Liashenko

Editor de foto,

Coordenador de fotógrafos,

Autor da capa:

Yurii Stefaniak

Editora Chefe do Ukraïner Internacional:

Anasstacía Marushevska

Tradutora:

Anna Bogodyst

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

Editor de tradução:

Guilherme Calado

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