É difícil sobrevalorizar o trabalho dos socorristas. Estas pessoas estão entre as primeiras a chegar ao local dos desastres e catástrofes, sem medo do risco e do trabalho árduo para lutar pelo mais valioso — a vida. O seu papel tornou-se especialmente notório durante a guerra com a Rússia, que não se intimida com métodos não convencionais e bombardeia literalmente tudo — edifícios residenciais, escolas, hospitais, armazéns com ajuda humanitária e infraestruturas civis. Para além dos incêndios provocados por ataques inimigos, os socorristas estão também a lidar com as consequências de uma densa minagem. É claro que os pedidos diários de ajuda na vida quotidiana não desapareceram. Por isso, ser um socorrista significa ter o treino físico e emocional adequado para poder responder a muitas chamadas, sabendo que muitas vezes a sua própria vida está em jogo.
A divulgação do trabalho das equipas de emergência também é importante, pois não só forma uma atitude valiosa em relação ao seu trabalho, como também documenta acontecimentos importantes que afetam a sociedade. E em tempos de guerra em grande escala, o apoio dos meios de comunicação social ao trabalho das equipas de salvamento é também uma forma de mostrar ao mundo a verdadeira cara da Federação Russa.
Presidente da Ucrânia, Zelenskyi
Pavlo Petrov, fotógrafo do Serviço Nacional de Emergência da Ucrânia (SNEU), tem vindo a relatar o trabalho das unidades de salvamento desde 2017 e testemunhou quase todos os incêndios em Kyiv nos últimos três anos. Graças às suas fotografias, a Ucrânia e o mundo inteiro podem ver o heroísmo dos socorristas ucranianos, bem como as consequências dos crimes de guerra russos. Falámos com Pavlo sobre o seu percurso profissional e a sua motivação na profissão.
— Sou da cidade de Starobilsk (leste da Ucrânia — ed.) que está ocupada desde os primeiros dias da guerra em grande escala. Levei a minha mãe de lá para Kyiv, e a minha avó recusou-se a evacuar e ficou em casa porque tem problemas nas pernas.
Quando era jovem, pratiquei boxe e kickboxing durante muito tempo em Starobilsk. Tinha um amigo que trabalhava nos bombeiros. Ele era fascinado por aquilo, havia algo de romântico. Depois de terminar o 11.º ano, decidi ir para lá. Fui para Kharkiv e passei em todos os testes. Estudei durante 5 anos na Universidade Nacional de Proteção Civil da Ucrânia. Enquanto estudante, interessei-me pela fotografia e comecei a praticar. Em 2017, licenciei-me e regressei a Starobilsk, por colocação. Nos primeiros meses, fui responsável pela proteção civil, inspeções e por vários eventos, como a “Semana da Segurança da Vida”. Percebi que não era assim que as coisas deveriam funcionar e queria ir embora. O então chefe do serviço de imprensa da região de Luhansk, num dos seus relatórios, disse: “Está a sair-se tão bem, não quer trabalhar para nós no serviço de imprensa?” Eu aceitei. E apercebi-me de que se pode trabalhar de uma forma diferente. Enquanto trabalhava no serviço de imprensa, comecei a acompanhar a equipa de resposta a chamadas, utilizando a [minha] experiência amadora com uma câmara. Estas saídas são uma prática normal, mas tentei fazê-las de uma forma melhor e mais bonita. O tema da pirotecnia, bem como o da guerra em geral, não é novo para mim, porque isto começou no leste da Ucrânia, ainda em 2014, incluindo postos de controlo e minagem do território. Em Svátove, explodiram os depósitos de artilharia [em 2015], foi uma desgraça. Havia sempre algo a explodir, estes “Uragán”, “Smerch”… E nós íamos por todo o lado, para desminar.
apresentação de slides
Trabalhei assim no leste durante três anos e depois fui transferido para o Departamento Municipal de Kyiv do SNEU. Disseram-me que a capital tem as suas especificidades: tudo é muito agitado e é preciso reagir muito depressa. Envolvi-me muito rapidamente.
O meu primeiro grande incêndio aconteceu quando estava de férias. Estava muito perto com a minha máquina fotográfica. Era perto de uma igreja católica e o telhado de um restaurante estava a arder. Depois disso, fiquei a conhecer rapidamente todo o departamento de intervenção. Houve escândalos em que eu me metia quando não devia, mas eles viram o que eu estava a fazer e que estava a fazer bem, e depois disso começaram a deixar-me ir mais além. Trabalhei assim durante três anos. Havia situações diferentes, incêndios diferentes. Por vezes, saía para os que não eram “meus”.
Quando tens informação interna, é só apanhar um táxi à noite. Nos últimos três anos, estive em quase todos os grandes incêndios, em Kyiv.
Socorristas ucranianos
No dia 23 de fevereiro de 2022, quando foi decretado o estado de emergência, era o meu turno e recebemos ordens para ficar mesmo à noite. Não tínhamos prática de pernoitar no trabalho, porque éramos móveis. Mas tínhamos de passar a noite num sítio qualquer, por isso fui para a unidade do meu amigo e passei a noite no seu gabinete. Recordo-me: calcei meias quentes de lã e deitei-me no sofá, o que era muito desconfortável — as minhas pernas ficavam de fora. Não consegui adormecer durante metade da noite, porque havia muita tensão informativa, toda a gente percebeu que algo estava prestes a acontecer. Às 4 da manhã, começaram a chegar mensagens dos poucos chats de notícias em que eu estava subscrito na altura. De manhã, nada mudou para mim. Quando a agitação começou no trabalho, eu estava muito calmo. Era como se estivesse à espera que isso acontecesse, sabia na minha cabeça que ia acontecer, e quando acontecesse, aconteceria. E assim foi.
O primeiro dia da invasão em grande escala foi extremamente longo. Pareceu-me que durou cerca de uma semana.
apresentação de slides
Recentemente, tivemos o funeral de Ruslan Koshovyi, o chefe da unidade de Hostomel, que se situa perto do aeroporto Antonov, onde os militares russos desembarcaram no primeiro dia. E eles (a equipa de salvamento — ed.) estavam a caminho de apagar o fogo, helicópteros dispararam contra eles, e nós recebemos esta informação muito rapidamente. E depois o que lhes aconteceu — depois a informação desapareceu porque surgiram problemas com as comunicações. Foram presos, metade foi deixada na unidade, metade foi transferida para um bunker.
Em 24 de fevereiro de 2022, houve muitas chamadas para o número 101. Tenho vídeos arquivados onde quatro telefonistas estão sentadas e quase nunca param de atender. Mudavam talvez uma vez por hora.
Durante este primeiro dia de invasão em grande escala, recebemos mensagens como “Temos uma marca no telhado”, “Ok, chamem a polícia”, “Não conseguimos contactar”, “Ok, liguem outra vez”. E havia muitas mensagens deste género. Não sei como é que elas aguentaram. Nos primeiros dias, penso que foram verdadeiras heroínas — sobreviver a um tal ataque de informação e ao pânico entre os residentes da cidade.
Ao fim da tarde, trouxeram os nossos homens, que tínhamos combinado com os ocupantes retirar do [aeroporto] Antonov. Entraram cerca de 20 pessoas, lembro-me que entraram e ficaram em silêncio. E percebeu-se que algo tinha acontecido às pessoas [de terrível] …
A partir desse dia, fiquei no trabalho, permaneci no departamento principal durante três meses. Era a única maneira de aceder muito rapidamente, à noite ou de manhã cedo, aos locais de “pryliót” (impacto de um ataque aéreo — ed.) ou de outras emergências. Assim, estive presente em todos os “pryliót” de Kyiv que ocorreram até ao final de abril de 2022.
apresentação de slides
Depois disso, fui chamado para a sede do SNEU, que é responsável por toda a Ucrânia. Não fui chamado, nem sequer me pediram, porque era necessário. Comecei a viajar por quase todo o país, onde podia. Porque começaram a entender que é [importante] fornecer suporte informativo às pessoas que combatem incêndios, que lutam não apenas contra o fogo, mas também contra minas.
Temos muitas áreas: mergulhadores, técnicos de rappel, cinólogos… Temos um serviço muito grande (mais de 70.000 pessoas) que tem um índice de confiança muito elevado. Por isso, era muito importante para mim, pessoalmente, mostrar o que vejo. Porque nestas pessoas vejo heróis.
apresentação de slides
Quando começou a invasão em grande escala, tudo mudou. Recebemos coletes à prova de bala e capacetes. O equipamento de combate a incêndios já é muito pesado, e agora foi-lhe acrescentado ainda isto.
Retrato de um socorrista ucraniano
Gravei muitas entrevistas com homens [que trabalham no SNEU], e eles dizem: “A minha atitude perante a vida, perante a minha família, mudou”. Como a minha, por exemplo, porque antes eu era uma pessoa diferente, podia arrancar e ir para qualquer lado. Agora continuo a ser o mesmo, mas penso: e se [acontecer algo]…
“Prylióts” repetidos são um [pesadelo]… No início de março de 2023, a nossa colega Yevheniia Dudka, que era chefe do serviço de imprensa do SNEU em Dnipro, morreu. Ela e a sua equipa estavam a apagar o incêndio de um armazém e este local foi novamente atingido. Yevheniia ficou ferida, passou mais de 11 meses num hospital na Alemanha, piorou e foi trazida de volta para cá. Infelizmente, morreu em casa. É assim que o trabalho dos serviços de imprensa é perigoso nestas condições.
Serviços de emergência ucranianos
Até à data, temos quase 80 socorristas mortos e quase 300, se não estou em erro, feridos. E isto apesar do facto de estarmos protegidos pela Convenção de Genebra. Não somos militares, não temos armas. Mas os russos estão a atacar-nos. E eles sabem o que estão a fazer.
Basta lembrar a Rua Zhylianska, em Kyiv. No ano passado, quando os ocupantes começaram a atacar a infraestrutura energética, aconteceram ali coisas terríveis. Primeiro, atingiram um edifício administrativo — as nossas equipas de salvamento chegaram lá. Uma hora mais tarde, voltaram a atacar. Um Shahed atingiu um edifício residencial a 15 metros de mim. Estou muito contente por ninguém ter ficado ferido, mas há muitos casos destes.
Serviços de emergência ucranianos
Os nossos [homens] estão habituados a trabalhar assim. A dar tudo para salvar pessoas. E não podemos deixar de o fazer. O carácter das pessoas em geral mudou, e no nosso serviço certamente.
A coisa de que mais me arrependo foi quando estávamos em Bakhmut, no inverno, e tentámos tirar as crianças de uma casa que estava a arder. Foi bombardeada durante a noite e nós fomos apagar o fogo. No início, quando o bombardeamento estava a decorrer, as pessoas apagavam o fogo com a sua própria água. Depois disso, pediram-nos para trazer água e comida. No dia seguinte, viemos e trouxemos tudo o que era preciso. E vi quantas crianças estavam lá. Era quase antes do Ano Novo. Nunca esquecerei aqueles olhos que olhavam para nós através da janela e que não percebíamos como podíamos ajudar, porque os pais se recusavam a tirá-los dali. Isto foi antes da evacuação forçada. Algo humano foi cortado. Vês que as pessoas vivem de forma completamente diferente.
apresentação de slides
Como me disse um amigo meu pirotécnico que está atualmente a desminar a região de Kherson: começamos a apreciar a vida. Simplesmente, a vida. Começamos a apreciar a vida e a fazer o nosso melhor para que as pessoas vejam melhor as condições de trabalho e o heroísmo dos nossos socorristas.
apresentação de slides
Agora é assim que trabalhamos: com uma mochila enorme, sempre com portátil, câmaras, três lentes, torniquete e luvas. À noite, estou pronto para sair a qualquer chamada, seja ela na zona de Kyiv ou não. Por exemplo, quando ia a caminho de Kherson — pediram-me para ir lá para tirar fotografias, quando houve bombardeamentos muito fortes — e, à noite, enquanto viajava de comboio, descobri que os ocupantes tinham bombardeado Uman. Mudei de comboio em Mykolaiv e fui para Uman durante dois dias. Parece-me que qualquer serviço se sustenta na iniciativa de pessoas que se empenham pela sua causa e não recuam. Penso que apenas assim ganharemos.