Igreja Ortodoxa da Ucrânia: o caminho para a independência de Moscovo

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A Igreja ucraniana tem enfrentado muitos obstáculos, desde os tempos antigos até à atualidade. A sua história pode parecer confusa e complicada, uma vez que, desde o final do século XVII, a Igreja se encontra nas trevas da ocupação moscovita e depois soviética.

Sob o domínio imperial e comunista, os ucranianos e outras comunidades nacionais em território ucraniano não tinham liberdade de religião, de expressão ou de qualquer identidade cultural. A Igreja de Kyiv, sendo a mais antiga da região, foi perseguida e russificada. Só com a proclamação da independência da Ucrânia em 1991 é que a Igreja ucraniana começou a renascer, coexistindo ainda com a Igreja russa, imposta à força como Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo (que é, no final das contas, a Igreja Ortodoxa Russa).

A Ucrânia realmente proíbe o cristianismo e a Igreja?

Após a invasão russa em grande escala da Ucrânia em 2022, os representantes do governo e da sociedade civil começaram a erradicar a influência russa em vários aspectos da vida, incluindo a esfera religiosa. Entretanto, o Kremlin, juntamente com a Igreja Ortodoxa Russa, construiu uma máquina de propaganda ao longo de décadas para dominar o ambiente religioso dos cristãos ortodoxos em todo o mundo. Eles tentam convencer os países ocidentais de que a Ucrânia “proíbe o cristianismo” e “persegue os crentes”. 

Esta mentira é difundida, em particular, pelo candidato presidencial dos EUA, Vivek Ramaswamy, que afirma que a Ucrânia está a “utilizar o dinheiro dos contribuintes americanos para proibir o cristianismo”.

Vivek Ramaswamy sobre a Ucrânia

O que está realmente acontecendo? No âmbito da proteção da segurança nacional durante a guerra com a Rússia, a Verkhovna Rada da Ucrânia (Conselho Supremo da Ucrânia, parlamento — ed.) proibiu a atividade das organizações religiosas que têm ligações com a Federação Russa. A essência da lei é que, se for provado que uma instituição religiosa está ligada ao Estado agressor (como a Rússia é oficialmente reconhecida), a sua atividade na Ucrânia pode ser interrompida através do tribunal.

Não se trata de restringir o direito à religião de ninguém, porque uma ação judicial contra representantes individuais da igreja ou instituições concretas não significa uma proibição da própria Igreja ou de toda a religião. Trata-se de uma ameaça à segurança nacional e de uma violação da legislação ucraniana. Alguns representantes da Igreja ucraniana do Patriarcado de Moscovo são acusados de traição, uma das acusações mais graves na legislação de qualquer país.

Deve-se notar que, de acordo com os dados do Relatório Internacional sobre Liberdade Religiosa do Departamento de Estado dos EUA, 62,7% dos ucranianos identificam-se como cristãos ortodoxos; 10,2% como católicos gregos; 3,7% como protestantes; 1,9% como católicos romanos; e outros 8,7% consideram-se “apenas cristãos”. No total, o número de cristãos na Ucrânia é de cerca de 37,9 milhões.

O resto da população é constituído por judeus, muçulmanos, representantes de outros grupos religiosos ou pessoas que não pertencem a nenhuma religião. Embora a sua percentagem seja muito menor à dos cristãos, estes também representam cerca de 5,6 milhões de pessoas.

Para um aprofundamento no tema, é também importante compreender a história da formação do cristianismo na Ucrânia e a razão pela qual os ucranianos estão tentando se livrar da influência do Patriarcado de Moscovo. Com o apoio de Oleg Turiy, Diretor do Instituto de História da Igreja da Universidade Católica Ucraniana, e do pesquisador Anatoliy Babynskyi, debruçamo-nos sobre a história da formação das instituições eclesiásticas na Ucrânia e o confronto entre elas.

Como o cristianismo se instalou no território da Ucrânia?

Petro Andrusiv, pintura “O baptismo da Rus-Ucrânia”

A Metrópole de Kyiv (do grego: μητρο – mãe, πολίτης – cidade), fundada na época do Batismo da Rus-Ucrânia, tornou-se a eparquia fundadora de todas as eparquias que surgiram na Belarus e na Rússia modernas.

Isto refuta a narrativa russa de que Moscovo é a igreja-mãe dos ucranianos e dos bielorrussos.

Eparquia
Unidade administrativa da igreja no cristianismo oriental, particularmente nas igrejas ortodoxa e católica grega. (Equivale ao conceito de Diocese).

O Baptismo de Rus de Kyiv

O cristianismo chegou pela primeira vez ao território da Ucrânia moderna através das colônias gregas na Crimeia e na região setentrional do Mar Negro, bem como através de contactos comerciais com o Império Bizantino e outros países cristãos. 

Às terras ucranianas estão ligadas às atividades missionárias, na segunda metade do século IX, dos pregadores e educadores cristãos eslavos, os irmãos Cirilo e Metódio e os seus discípulos

Cirilo e Metódio foram os autores do primeiro alfabeto eslavo e das primeiras traduções de livros litúrgicos para a língua eslava.

Santos Cirilo e Metódio

Mesmo antes do batismo oficial do moderno território da Ucrânia, o cristianismo já se encontrava ativamente difundido na Rus de Kyiv, nomeadamente durante os reinados dos príncipes Askold, Oleg e Igor. A notável princesa-regente Olga foi batizada em Constantinopla, na noite de 17 para 18 de outubro de 957, e convidou um bispo da Alemanha para ir a Kyiv.

Em 988, o príncipe Volodymyr de Kyiv foi batizado e proclamou o cristianismo como religião do Estado da Rus de Kyiv. Ao mesmo tempo, a Metrópole de Kyiv foi estabelecida como parte do Patriarcado de Constantinopla.

Metrópole
No cristianismo, uma área sob a autoridade canónica de um metropolita; geralmente consiste em várias eparquias unidas na chamada área metropolitana. (Equivale ao arcebispado).

Como surgiu a Metrópole de Moscovo?

Pertencentes ao Oriente bizantino, as elites seculares e eclesiásticas da Rus de Kyiv estavam abertas às relações com o Ocidente latino, como o atestam a troca de embaixadas com a Sé Apostólica Romana e os casamentos dinásticos de príncipes e princesas de Kyiv com governantes de outros países europeus.

Hermógenes ou Yermolay, Patriarca de Moscovo

As primeiras tentativas de dividir a metrópole e separar as dioceses setentrionais do centro de Kyiv tiveram lugar durante o reinado do príncipe Andriy Boholyubskyi de Suzdal, cujo exército capturou, destruiu e saqueou Kyiv em 1169. Entre os tesouros roubados estava o ícone da Virgem de Vyshgorod (que se acredita ser milagroso) que foi parar a Vladimir-nad-Kliazma (atual Vladimir).

A divisão final entre as metrópoles de Kyiv e Moscovo ocorreu após o Concílio de Florença, em 1438-1439, no qual o Metropolita de Kyiv, Isidoro, se pronunciou a favor da unidade com a Igreja Romana.

Como se afirmava a Metrópole de Moscovo?

Moscovo rejeitou as decisões do Concílio de Florença que tentava unir as Igrejas Oriental e Ocidental. Em 1448, sem o consentimento do centro da Ortodoxia Oriental em Constantinopla, Moscovo elegeu o seu próprio metropolita, Jonas de Ryazan. Foi em oposição à unidade das Igrejas e à Igreja-Mãe que nasceu a ideia de Moscovo como a “Terceira Roma” e a reivindicação da sua missão “especial”.

"Terceira Roma"
É assim que se designam os centros do cristianismo que floresceram em diferentes períodos da história. O primeiro é Roma, o segundo é Constantinopla. Moscovo criou uma ideologia segundo a qual é a sucessora destes centros.

De 1448 a 1589, esta metrópole de Moscovo viveu isolada do resto do mundo cristão. Devido ao seu isolamento canônico, existiam algumas diferenças na prática litúrgica com outras Igrejas Orientais.

A autocefalia (independência) da Metrópole de Moscovo foi reconhecida em 1589, quando as autoridades czaristas, aproveitando a chegada do Patriarca de Constantinopla para receber donativos, o obrigaram a proclamar um novo patriarcado em Moscovo. No entanto, a Metrópole de Kyiv permaneceu sob o domínio de Constantinopla e não de Moscovo.

Como é que a Igreja Ortodoxa Ucraniana foi russificada?

Entrada de Bohdan Khmelnytsky em Kyiv em 1649

Os acontecimentos da Guerra de Libertação Nacional (1648-1657), liderada por Bohdan Khmelnytsky, tornaram-se um ponto de virada no desenvolvimento da Metrópole Ortodoxa de Kyiv. O hetman esperava encontrar um aliado no Estado de Moscovo, mas verificou-se mais tarde que esta aliança teve consequências desastrosas para a vida estatal, política, cultural e religiosa da Ucrânia.

Após o Tratado de Pereyaslav, em 1654 (uma aliança entre o Estado da época no território da atual Ucrânia e Moscovo), as terras ucranianas perderam gradualmente a sua autonomia e acabaram por ficar sob a influência total de Moscovo.

Apesar da resistência do clero da Metrópole de Kyiv, em 1686 Moscovo conseguiu re-subordinar a Sé de Kyiv ao seu patriarca.

Em Constantinopla, este assunto foi “resolvido” por meio de generosos subornos, uma vez que os patriarcas bizantinos se encontravam numa situação difícil sob o domínio otomano. Foi apenas em 2018 que o Patriarca Bartolomeu de Constantinopla reverteu finalmente esta infame decisão do seu antecessor de longa data, Dionísio IV.

Porque é que a Metrópole de Moscovo precisava de Kyiv?

Na altura da sua adesão ao Patriarcado de Moscovo, a Metrópole de Kyiv encontrava-se num nível mais elevado de desenvolvimento da vida social e eclesiástica, principalmente devido à influência da educação e da cultura religiosa da Europa Ocidental. Por isso, tornou-se imediatamente uma fonte de recursos humanos instruídos para Moscovo.

As reformas educativas e litúrgicas levadas a cabo no Patriarcado de Moscovo na segunda metade do século XVII não teriam sido possíveis sem os teólogos ucranianos e bielorrussos. No entanto, com o passar do tempo, a Metrópole de Kyiv tornou-se uma arquidiocese comum do Patriarcado de Moscovo, e todas as suas características únicas e autonomia interna foram gradualmente destruídas.

A Guerra de Libertação Nacional de 1648-1657 encabeçada por Bohdan Khmelnytsky
tinha como principal objetivo libertar o povo ucraniano do domínio do Estado medieval da Comunidade Polaco-Lituana (uma confederação do Reino da Polónia e do Grão-Ducado da Lituânia)

Como é que o Império Russo transformou a Igreja num instrumento de influência política?

Czar Pedro, o Grande, de Moscovo

No reinado de Pedro, o Grande, o Patriarcado de Moscovo foi abolido e substituído pelo “Santo Sínodo”, que governava a Igreja Russa e era essencialmente um dos departamentos do Estado. Ao mesmo tempo, o principado de  Moscovo passou a chamar-se Império Russo, o que deveria legitimar a reivindicação de todo o patrimônio da antiga Rus.

Nos séculos XVIII e XIX, as autoridades eclesiásticas e estatais russas intensificaram a russificação da Igreja na Ucrânia, de modo que, em meados do século XX, todos os metropolitanos de Kyiv eram de etnia russa.

As reivindicações da Rússia sobre o patrimônio da Rus de Kyiv
Este é um dos mitos históricos mais difundidos que a Rússia utilizou em várias fases da história, para criar uma ligação artificial com a Europa e justificar as suas ambições imperiais. De fato, o centro da "Rus" era Kyiv e o território da Rússia moderna chamava-se, nessa altura, Zalissia (significa Alem-Mata ou Tras-os-Bosques — ed.).

Quando e porquê surgiu a Igreja Ortodoxa Autocéfala (independente) Ucraniana?

As ruínas da Catedral de São Miguel em Kyiv, destruída pelos soviéticos em 1937.

Após a Revolução Bolchevique de 1917, o novo governo comunista não reconheceu a religião e lançou um ataque maciço contra ela. As igrejas foram destruídas e o clero foi fisicamente exterminado.

Porém, foi nesse período que nasceu, entre o clero ucraniano, o movimento para a ucranização da vida religiosa e a separação do Patriarcado de Moscovo.

Entre 1917 e 1921, realizou-se uma série de reuniões e concílios que resultaram na proclamação, em 1921, da Igreja Ortodoxa Autocéfala (independente)  Ucraniana (IOAU) que, entretanto, não tinha uma hierarquia canonicamente reconhecida.

Assembleia Geral ucraniana do Primeiro Conselho Ortodoxo da Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana, em Kyiv, 1921.

O Patriarcado de Moscovo reagiu de forma extremamente negativa às aspirações e ações independentistas dos sacerdotes e leigos ucranianos. Em 1930, o regime comunista soviético liquidou a IOAU. Os líderes do movimento autocéfalo foram reprimidos e mortos.

Durante um curto período de tempo, durante a ocupação alemã, a ideia da IOAU voltou a renascer (1941-1944), quando alguns bispos ucranianos foram ordenados com a ajuda da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Polônia.

No entanto, com o avanço das tropas soviéticas, os bispos da IOAU da “segunda geração” emigraram para o Ocidente, e esta Igreja continuou a existir apenas na diáspora.

As políticas repressivas anti-religiosas abrandaram um pouco durante a Segunda Guerra Mundial, mas este era um objetivo estratégico. Desta forma, Stalin queria aumentar o prestígio internacional da URSS e ganhar o agrado da população soviética. Por isso, em 1943, o Patriarcado de Moscovo pôde restaurar as suas estruturas, e no nome da Igreja a expressão “da Rússia” foi substituída por “russa”, para sublinhar a sua pretensão de ser herdeira de toda a Rus antiga.

 

Apesar de um certo abrandamento da atitude das autoridades soviéticas em relação à Igreja Ortodoxa Russa, os serviços secretos controlavam de perto a sua vida interna e as suas atividades internacionais. Muitos membros do seu alto clero foram recrutados pela KGB como agentes.

Agentes na Igreja Ortodoxa Russa

COMITÊ DE SEGURANÇA DO ESTADO (em russo, KGB)

Órgão governamental da URSS, cujas principais tarefas incluíam a espionagem, a contraespionagem e a luta contra o nacionalismo, a dissidência e as atividades anti-soviéticas. Na Federação Russa, o KGB foi sucedido pelo FSB (Serviço Federal de Segurança).

Após a anexação das terras da Ucrânia Ocidental à URSS, os serviços secretos soviéticos organizaram o Pseudo-Conselho de Lviv, em 1946, onde anunciaram a adesão dos católicos gregos (uniatas-ed.) ao Patriarcado de Moscovo. Em Zakarpattia, uma “reunificação forçada dos uniatas” com a Igreja Ortodoxa Russa aconteceu em 1949.

Daquela época até 1989, os greco-católicos ucranianos da URSS foram obrigados a passar à clandestinidade. Eles existiam legalmente apenas na diáspora.

Qual é a diferença entre a Igreja Ortodoxa Ucraniana dos Patriarcados de Moscovo e de Kyiv?

Igreja Ortodoxa Russa

Com o início da perestroika (1985-1991) na URSS, reavivou-se na Ucrânia o desejo de os cristãos ucranianos deixarem a “tutela” do centro eclesiástico de Moscovo.

Perestroika
Período das reformas de Gorbachev que visavam ultrapassar as crises do regime totalitário dos seus antecessores.

Apercebendo-se da inevitabilidade das mudanças sociais, o Patriarcado de Moscovo decidiu, em 1989, conceder ao distrito eclesiástico ucraniano da Igreja Ortodoxa Russa mais autonomia na sua vida interna, bem como o direito de se chamar “Igreja Ortodoxa Ucraniana”. No entanto, estas mudanças foram apenas formais, uma vez que Moscovo procurou manter o seu poder sobre as dioceses ortodoxas ucranianas.

Esta parte da Igreja Ortodoxa Russa é agora chamada, na Ucrânia, de Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) ou Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia. Embora, os representantes desta Igreja tentam esconder dos seus fiéis a sua ligação com Moscovo.

Os documentos oficiais da Igreja Ortodoxa Russa não deixam dúvidas de que a Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) é uma das unidades estruturais da Igreja Russa, apesar dos indícios formais de independência. Enquanto estrutura eclesiástica separada, a Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) não é reconhecida por nenhuma Igreja Ortodoxa local no mundo e os seus bispos são considerados bispos da Igreja Ortodoxa Russa.

Como é que surgiu a Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kyiv?

No final da existência da URSS, em 1989, a Igreja Greco-Católica Ucraniana saiu da clandestinidade, o que enfraqueceu significativamente a influência da Igreja Ortodoxa Russa na sociedade ucraniana.

Ao mesmo tempo, vários padres pró-ucranianos da Ucrânia ocidental declaram a sua retirada da jurisdição do Patriarcado de Moscovo, anunciando a restauração da Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana e o restabelecimento de laços com os seus representantes na diáspora.

Estes sentimentos pró-autocéfalos entre os ortodoxos forçaram a chefia da Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) a apelar também ao Patriarcado de Moscovo em 1992 para que concedesse a autocefalia. No entanto, este pedido foi rejeitado e o metropolita Filaret (Denisenko) que era então o chefe da Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) foi forçado a demitir-se.

Em resposta, em 1992, o metropolita Filaret e vários outros bispos da Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) uniram-se com parte da Igreja Autocéfala Ucraniana e anunciaram a criação da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Kyiv.

Metropolita Filaret.

Em 1997, o Patriarcado de Moscovo lançou o anátema contra o metropolita Filaret, considerando-o um cismático que, nas suas palavras, “ousou” intitular-se Patriarca de Kyiv e de toda a Rus-Ucrânia. Apenas 21 anos mais tarde, em 11 de outubro de 2018, o Patriarca Ecumênico de Constantinopla respondeu ao apelo de Filaret e levantou o anátema, restaurando a sua dignidade canônica.

Desde 2014, quando a Rússia atacou a Ucrânia, o chefe da chamada Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo), o metropolita Onufri, tem cometido muitos atos controversos, e ainda mais durante uma guerra em grande escala. Por exemplo, em 9 de maio de 2015, o metropolita não se levantou para honrar a memória dos Heróis da Ucrânia que defenderam a independência da sua pátria dos invasores russos. E em 20 de agosto de 2022, num dos principais monumentos religiosos da Ucrânia, o Kyiv-Pechersk Lavra, abençoou os prisioneiros de guerra russos. O chefe da chamada Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) desejou muitos anos de vida, ofereceu livros de orações e chocolates aos ocupantes que mataram ucranianos.

Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia

Qual foi o caminho para a independência da Igreja ucraniana?

Catedral de S. Miguel em Kyiv.

No início da década de 2000, o Governo ucraniano e as duas Igrejas ortodoxas ucranianas (a autocéfala e a do Patriarcado de Kyiv) começaram a procurar formas possíveis de se unirem e de a Igreja ucraniana ser reconhecida como independente pelo Patriarca Ecumênico. Tanto os líderes da Igreja como os estadistas dirigiram apelos a este respeito.

Por fim, após anos de negociações, em 2018, o Patriarca de Constantinopla anulou a carta de 1686 que retirava a independência da Igreja ucraniana e restaurou a sua jurisdição sobre o território da Ucrânia. Assim, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia voltou a estar subordinada ao Patriarca de Constantinopla, e não a Moscovo.

Depois disso, em 2018, convocou o Conselho de Unificação dos chefes de todas as igrejas ortodoxas ucranianas em que foi criada a Igreja Ortodoxa da Ucrânia.

A nova igreja integrou todos os bispos das Igrejas Ortodoxas da Ucrânia mas apenas dois bispos da Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) participaram do concílio.

No início de 2019, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia recebeu o Tomos de Autocefalia de Constantinopla. Posteriormente, a nova Igreja foi reconhecida pelas Igrejas da Grécia e de Chipre, bem como pelo Patriarcado de Alexandria.

O Patriarca Ecumênico Bartolomeu I assina o Tomos de autocefalia para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia.

Tomos

Um decreto emitido pelo santo sínodo e/ou pelo chefe de uma Igreja Ortodoxa local relativamente à organização da Igreja ou à doutrina. A concessão de um tomos significa, na maioria das vezes, que a nova igreja local recebe autocefalia, ou seja, independência de outras igrejas ortodoxas, mas em unidade canónica com elas.

Como é que a Rússia reagiu à autocefalia da Igreja Ortodoxa da Ucrânia?

É interessante que, ainda na fase de análise da questão da autocefalia ucraniana, as autoridades russas tenham convocado uma reunião com representantes do Conselho de Segurança da Rússia. Esta preocupação ilustra claramente a atitude da Rússia em relação à Igreja como um instrumento de influência política. O Kremlin tenta promover o seu “mundo russo” através de todos os meios possíveis.

A Igreja Ortodoxa Russa continua a exercer uma “influência suave” na Ucrânia, utilizando o seu ramo, a Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo) que continua a existir na Ucrânia. Para esse efeito, utilizam o elevado nível de confiança que os crentes depositam no clero como os melhores representantes da sociedade.

Porque é que o Patriarcado de Moscovo e a Igreja Ortodoxa Russa são perigosos?

Patriarca Cirilo

Durante anos, a Igreja Ortodoxa Russa formou “agentes eclesiásticos” para difundir narrativas imperialistas sobre a Rússia e a necessidade de fazer regressar a Ucrânia, Belarus e a Moldávia ao seu seio. 

Os resultados deste plano são particularmente sentidos pelos ucranianos na Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo), onde muitos membros do clero têm uma posição anti-ucraniana. Denúncias escandalosas sobre esse “clero” aparecem regularmente na mídia.

A fabricação e o tráfico de armas, o abuso sexual de crianças, a assistência e o apoio à guerra russa na Ucrânia desde 2014 — tudo isto faz parte da lista de “êxitos” do Patriarcado de Moscovo.

O topo da hierarquia da Igreja Ortodoxa Russa está geralmente ligado ao Kremlin e ao próprio Putin. Por exemplo, o Patriarca Cirilo de Moscovo e os seus acólitos estão sujeitos a severas sanções no mundo democrático pelo seu apoio à invasão da Ucrânia e pelo seu envolvimento no rapto de crianças ucranianas.

Um padre da Igreja Ortodoxa Russa visita crianças ucranianas deportadas.

Um dos exemplos de apoio à agressão russa é o conhecido sacerdote Andrei Tkachov, que, em vez de ensinar e pregar a mensagem de amor do Evangelho, prega sermões “patrióticos” que reflectem o espírito de um comissário político-militar da era soviética. Aos 15 anos de idade, entrou na Escola Militar Suvorov de Moscovo e, depois de se formar, estudou no Instituto Militar na Faculdade de Propaganda Especial.

O arcipreste Andrei Tkachov, um dos principais ideólogos do "mundo russo" através do prisma "ortodoxo" (sancionado pela União Europeia e pela Ucrânia).

Num dos vídeos, o arcipreste Andrei justifica as ações das tropas russas na Ucrânia, chamando-as de “guerra apocalíptica” e “purificação”. Noutro, apela explicitamente ao bombardeamento dos ucranianos com foguetes “Grad”, cinicamente, enquanto lê uma oração.

É paradoxal que agora, durante uma guerra em grande escala, os militares russos estejam destruindo igrejas e instituições religiosas em toda a Ucrânia, incluindo as que pertencem à Igreja Ortodoxa Ucraniana (Patriarcado de Moscovo).

Igrejas destruídas Ucrânia

Consciente das potenciais ameaças e consequências das atividades do Patriarcado de Moscovo, a Verkhovna Rada (parlamento-ed.) registrou, em 29 de março de 2022, um projeto de lei para proibir a Igreja Ortodoxa Russa na Ucrânia. A razão para este projeto de lei é preservar a integridade territorial da Ucrânia, uma vez que a ocupação cultural é a primeira coisa que a Rússia faz antes de lançar uma invasão militar. Os próprios ucranianos também compreendem este fato, tal como confirmado pela pesquisa dos especialistas ucranianos em desinformação Detector Media:

— Todas estas técnicas de propaganda são concebidas para criar a ilusão de um conflito civil religioso na Ucrânia para outros Estados e para os próprios ucranianos, para os dividir segundo linhas religiosas. Na realidade, porém, tudo isto não passa de uma encenação bem articulada por Moscovo. As recentes pesquisas de opinião pública mostram de forma convincente que os ucranianos compreendem este fato: 78% dos cidadãos acreditam que o Estado deve intervir, em certa medida, nas atividades da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo. Entre eles, 54% consideram que esta instituição religiosa deveria ser totalmente proibida na Ucrânia.

Um número crescente de antigas paróquias do Patriarcado de Moscovo transferiu-se voluntariamente para a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, que lhes ofereceu um processo simplificado. Desde o início da invasão em grande escala, 277 paróquias fizeram esta transição. É necessário eliminar a influência da Igreja Ortodoxa Russa também noutros países, porque não se trata apenas da segurança da Ucrânia mas também dos países ocidentais, onde o Kremlin difunde propaganda e rede de agentes através de representantes do clero.

Material preparado por

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Autora:

Anatolii Babynskyi

Oleg Turii

Vladyslav Havrilov

Tradutora:

Anna Bogodyst

Editor de tradução:

Guilherme Rett

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

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