Em 16 de março de 2022, aviões russos lançaram duas bombas de 500 kg sobre o Teatro Dramático de Mariupol, que, na altura, servia de abrigo e refúgio a centenas de habitantes da cidade. Para assinalar o aniversário da tragédia, pedimos aos habitantes de Mariupol que nos enviassem as suas fotografias de arquivo do teatro e partilhassem as suas memórias. Antes de se tornar um local de dor, este edifício era um local de encontro e eventos culturais, no coração da cidade.
Os invasores destroem as cidades e as aldeias ucranianas, tentam apagar a memória de como era a vida nesses locais. As memórias das nossas povoações com cicatrizes são frequentemente sensíveis e dolorosas, e é extremamente importante preservá-las para as gerações futuras, através, por exemplo, da recolha e digitalização das fotografias sobreviventes, da sua assinatura, de quando e por quem foram tiradas, de quem e o que retratam. Porque estas histórias pessoais constituem a nossa história comum. E tudo isto se relaciona com a continuidade da resistência, com o desejo comum de preservar a nossa identidade.
Tania
— Era o verão de 2021. Ia a caminho de um encontro com o meu amigo Anton Telbizov, o diretor do teatro "Teatromania". Foi ele que tirou esta fotografia. Os habitantes de Mariupol marcavam frequentemente encontros perto do drama (a abreviatura local da expressão "teatro dramático" – ed.).
Mariia
— 29 de dezembro de 2019. Nevou. A minha amiga Natasha telefonou-me e fomos dar um passeio com as crianças. Atrás do teatro (ao fundo, parte de trás onde fica a entrada de serviço), tinham acabado de montar uma pista de gelo. Era tão mágico e fabuloso. Mariupol e a praça decorada com luzes de Natal, adultos e crianças, o espírito natalício no ar. Lembro-me de pôr aquele chapéu engraçado e as luvas. Estava absolutamente feliz.
Viktoriia (na foto está com o seu filho)
— Era a abertura da época dos motociclistas. Eu e o meu marido motociclista viemos assistir a este evento. Esta é uma fotografia de 2020, de quando o meu marido não estava em serviço (é marinheiro) e pôde participar. A abertura (na primavera) e o encerramento (no outono) da época dos motociclistas realizavam-se todos os anos na cidade.
Svitlana
— A fotografia é de mim no dia 29 de setembro de 2021. Havia um festival do livro e o feriado municipal, tudo coincidiu. Tivemos muitos festivais nesse ano. De manhã, fui passear com uma amiga, comprei um livro (acabei por o tirar do inferno). Fomos à praia, à noite houve uma feira de solidariedade e eu fiz voluntariado lá. E depois fomos à beira-mar: houve um concerto e a inauguração do cais. Voltámos para casa de madrugada. Foi um dia bonito, soalheiro e quentinho.
Lera
— Era 21 de setembro de 2021. Estava a trabalhar no programa do concerto do Dia da Cidade, reunindo-me com pessoas que estavam envolvidas na preparação do evento. Na foto, eu e a minha amiga Alevtina estamos em frente das traseiras do teatro. [...] Os funcionários eram muito simpáticos, sempre sorridentes e afáveis.
Olga
— 30 de agosto de 2019. [Na foto], a minha mãe Valentyna, estamos no festival de música clássica de Mariupol, perto do teatro. Foi um evento maravilhoso que reuniu os nossos munícipes ao ar livre e nos permitiu contactar um pouco com a arte.
A minha mãe perdeu a vida na sua própria casa, em 10 de março de 2022, durante o bombardeamento do bairro Skhidnyi.
Tania
— Os meus pais vivem em Mariupol, e o meu marido e eu fomos lá passar uns dias no final de dezembro de 2021. Eu estava grávida de 5 meses. A atmosfera de inverno era incrível e, nesse ano, a árvore de Natal de Mariupol foi uma das mais belas da Ucrânia. O lugar parecia fabuloso. Há quem diga que, já nessa altura, havia ansiedade no ar. Eu não pensava assim, planeava visitar os meus pais durante algumas semanas em fevereiro. Tive sorte por esses planos não se terem concretizado. Ainda não consigo acreditar que a cidade está destruída.
Alevtyna
— [Esta foto foi tirada no] aniversário da libertação de Mariupol (em 2021), durante uma procissão solene. Na foto, estou com Alina, uma blogger que era minha amiga em Mariupol e que agora está na Geórgia. Esta data simbólica tem sido festiva para a cidade desde 2015 e, em 2021, foi organizada uma grande procissão com a participação de soldados de várias unidades, desde a Praça da Svoboda até ao teatro.
Alevtyna
— Manifestação em 22 de fevereiro de 2022, perto do teatro, realizada sob o lema "Mariupol é Ucrânia", após o discurso de putin* no dia anterior. Um grande número de amigos e conhecidos, confiantes de que sobreviveríamos em quaisquer circunstâncias: na fotografia, estou com o meu filho, Dmytro Paskalov (agora em cativeiro), a sua mulher, a poetisa Oksana Stomina, Petro Andriushchenko, Oleksandr, Yevhen, Marina, todos residentes de Mariupol, que estavam e estão unidos pelo amor à sua cidade natal.
**é respeitada a grafia da autora.
Alevtyna
— A minha mãe. Este é um local de inverno perto do teatro no final dos anos 90. A principal árvore de Natal da cidade ficava sempre perto do teatro e este acolhia os espetáculos de Ano Novo para crianças. Há também uma zona fotográfica à direita. Muitos habitantes de Mariupol recordam o fotógrafo que estava de serviço perto do teatro. Era possível tirar uma fotografia com ele e recebê-la impressa em poucos dias.
Olena
— 7 de maio de 2021, passeei pela cidade com a minha irmã e a minha sobrinha, desde a estação central dos correios até ao jardim da cidade e ao teatro, e depois elas acompanharam-nos até às “1000 Pequenas Coisas”, e nós acompanhámo-las até à paragem do autocarro 15a. Fazíamos muitas vezes este tipo de passeios, por isso não nos lembramos de nenhum pormenor específico deste passeio em particular. Só me lembro das sensações que tive na altura: desfrutar dos dias quentes de sol e ter a minha família ao meu lado.
Ania
— O teatro, o verão... Os dias mais felizes para mim. A fotografia foi tirada no verão de 2021. Os meus amigos e eu costumávamos ir a uma padaria familiar perto do teatro. Normalmente, levávamos bebidas frescas e guloseimas e sentávamo-nos neste mesmo sítio que aparece na fotografia. Ríamos, brincávamos, víamos as crianças a atravessar a fonte e depois fazíamo-lo nós próprios. E havia também um grupo de pessoas que se juntava ali para andar de patins, skate e bicicleta. Por mais estranho que possa parecer, adorávamos apanhar o momento em que um dos nossos amigos caía de forma estranha. Às vezes, vinha sozinha para ver a vida, como as pessoas andavam, riam, cantavam, faziam tik-toks, casais passeavam – parecia tudo tão feliz. Um lugar acolhedor e um monte de recordações que agora me aquecem a alma, porque não resta nada para além de fotografias e recordações.
Mariia
— Esta fotografia foi tirada no verão de 2021, quando o festival de teatro iStage estava a decorrer em Mariupol. Eu ia assistir a uma atuação noutro local do teatro e decidi tirar uma fotografia porque todo o dia foi muito teatral. E acontece que esta é quase a única fotografia minha com o teatro. Acontece muitas vezes não tirarmos fotografias de coisas familiares. E o teatro era uma constante em Mariupol. Esta fotografia foi ocasional e agora tornou-se simbólica.