O longo caminho para a Crimeia: a história de Mustafa Dzhemilev

Nessa noite, animais predadores, lobos ou chacais, uivavam sem parar. “Agora vão comer-nos”, chorava o menino de três anos, tentando abafar os sons terríveis. A mãe sentou-o ao colo, abraçou-o e acalmou-o: “O pai não vai deixar que ninguém nos coma. Não te preocupes, Mustafa”. Numa noite fria de 1946, a família Dzhemilev estava a caminho da sua nova casa. Com a permissão do comandante.

Numa noite fria de 1946, a família Dzhemilev estava a caminho da sua nova casa. Com a permissão do comandante.

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Este artigo foi publicado no âmbito da parceria entre o Ukraïner e a revista "História Local".

— São as minhas primeiras recordações de infância — diz o dissidente e preso político Mustafa Dzhemilev, 75 anos após os acontecimentos. Está sentado numa confortável cadeira estofada no seu escritório, em Kyiv. A sala está decorada com objetos relacionados com a Crimeia. Na parede, há um quadro de Bakhchisarai.

— Tinha sete meses de idade quando fomos deportados. A minha família foi parar ao Uzbequistão, na região de Andijom. Antes da nossa chegada, fizeram uma propaganda maciça: vinham aí os traidores. Em muitos sítios, os habitantes locais receberam os comboios com uma chuva de pedras. Mas quando viam mulheres e crianças a sair dos comboios, acalmavam-se. A discriminação era evidente. Estávamos sob a supervisão do comandante e os pais apresentavam-se todas as semanas. Só tínhamos o direito de circular num raio de quatro quilómetros. Nem sequer podíamos ir a um funeral numa aldeia vizinha sem a autorização do comandante. Uma saída não autorizada era considerada uma fuga e punida com 25 anos de prisão.

Deportação dos tártaros da Crimeia
As falsas acusações de colaboração com os nazis foram utilizadas para justificar o genocídio dos tártaros da Crimeia, cometido pelas autoridades soviéticas, em 1944.

Foto: Oleksandr Khomenko para “História local”

Dzhemilev fuma um cigarro. Pelo conteúdo do cinzeiro e da cortina de fumo no seu gabinete, não é o primeiro.

A conversa é interrompida pela campainha da porta. Um homem e uma mulher entram no gabinete de Dzhemilev. Cumprimentam-se em tártaro da Crimeia. A mulher põe delicadamente a mão de Mustafa na sua testa e beija-a – uma tradição, um sinal de respeito por pessoas de idade respeitável.

— São parentes? — pergunto.

— Quase — sorri o homem — Mustafa-agá e eu jogámos centenas de horas de xadrez.

Agá
Tratamento respeitoso reservado aos homens na cultura dos tártaros da Crimeia.

O convidado tira da caixa uma fotografia emoldurada. A fotografia retrata-o com Dzhemilev junto a um tabuleiro de xadrez. Entrega a fotografia a Mustafa-agá para que a assine. Dzhemilev escreve em árabe e em tártaro da Crimeia. Ao mesmo tempo, pede ao homem que descarregue desenhos animados para o tablet da sua neta: “Em tártaro da Crimeia, ucraniano, turco e inglês. Nunca em russo. Porque ela já começou a falar-me em russo”.

A mais nova da família Dzhemilev tem três anos de idade. Mustafa-agá mostra as fotografias mais recentes de Meriem no ecrã do telemóvel; a menina segura as bandeiras ucraniana e tártara da Crimeia. “Temos de imprimir esta e pendurá-la algures aqui”, diz, olhando à volta para as paredes e escolhendo um local. Entretanto, a convidada de Dzhemilev traz café para toda a gente e põe doces na mesa.

— O maior prazer para os tártaros da Crimeia durante a deportação era visitarem-se uns aos outros — diz Mustafa-agá — Tínhamos um esquema: eles vinham ter connosco e nós íamos ter com eles. Mesmo as famílias mais pobres mantinham uma reserva para os convidados. Café, por exemplo. Tentávamos não ter conversas francas à frente das crianças. Lembro-me que quando o meu pai começava a falar assim, a minha mãe afastava-o: “Silêncio, crianças”.

As portas de Dzhemilev quase nunca estão fechadas. Tem visitas a toda a hora. Alguns partem, outros chegam. Juntam-se a nós e ouvem o que Mustafa-agá conta.

Foto: Oleksandr Khomenko para “História local”

“O cão morreu”

— Era março de 1953. Tínhamos o rádio ligado. A voz de Levitan dizia que Estaline tinha morrido. E o meu pai disse: “Finalmente, o cão morreu”. E eu vim para a escola neste estado de espírito. E toda a gente estava a chorar. A soluçar. Como se o mundo estivesse a acabar. Só os tártaros da Crimeia não choravam. Reshat Bekmambetov, o nosso líder, reuniu toda a gente e disse: “Ouçam, todos estão a chorar, exceto nós. Temos de chorar. Caso contrário, os nossos pais serão presos”. Ele trouxe cebolas.

Yurii Levitan
Locutor de rádio na União Soviética.

E depois fomos levados para a cerimónia. O diretor da escola estava a falar, mas não acabou, desatou a chorar. E eu pensei: o meu pai disse que o cão tinha finalmente morrido, e este estava a chorar como se o seu próprio pai tivesse morrido. Fiquei a pensar como é que ele se iria comportar. Segui-o. Foi para uma sala de aula vazia, bateu com a cabeça na parede e soluçou. Estava num estado de psicose.

Depois disseram que, devido à morte do líder, tinha sido decretado luto de três dias e que não haveria aulas. Quase gritei “viva!”. Se o tivesse feito, os meus pais seriam presos de certeza. Contive-me e pensei: “Pelo menos este Estaline fez uma coisa boa”.

Terminada a escola, Mustafa Dzhemilev foi para Tashkent para entrar na Faculdade de Língua e Literatura Árabe. No entanto, o chefe do comité de admissão aconselhou-o secretamente a nem sequer tentar, pois tinha instruções para não aceitar tártaros da Crimeia. Mais tarde, Dzhemilev compreendeu o porquê. Todos os licenciados em árabe eram empregados no estrangeiro e tornavam-se automaticamente agentes do KGB. E os tártaros da Crimeia eram maus agentes.

Depois de não ter conseguido entrar na universidade, Dzhemilev arranjou emprego na fábrica de aviação de Tashkent. Passava todo o seu tempo livre na biblioteca. Devorava toda a literatura sobre a Crimeia. Fazia pesquisas e tomava notas. Praticava a escrita árabe.

“Que país de merda é a Rússia”

— Um dia, estava sentado na secção de livros raros. Dois jovens entraram e falaram um com o outro em tártaro da Crimeia. Um deles aproximou-se de mim e disse: “Estou a ver que lê em árabe. Pode traduzir-nos alguma coisa?”. Eu traduzi. E depois ele perguntou-me: “Porque é que tem todos os livros sobre a Crimeia?” Perguntou em russo. Respondi-lhe que era tártaro da Crimeia. Eles ficaram muito contentes. Disseram-me que estavam a envolver os jovens e a criar uma organização destinada a fazer regressar os tártaros da Crimeia à sua terra natal.

Dzhemilev foi convidado para uma reunião da organização para dar uma palestra sobre a história da Crimeia. Reuniram-se numa casa privada nos arredores de Tashkent. Discutiram os estatutos, o juramento e os seus deveres. Disputaram e discutiram. Depois de um jovem desconhecido ter dado uma palestra, a sala explodiu em aplausos.

— Nunca tinha sido tão aplaudido na minha vida. Porque eu dizia o que os meus ouvintes poderiam gostar. Por exemplo, como os tártaros da Crimeia derrotaram o exército russo, em 1711, perto do rio Prut. Tipo, como somos corajosos e como os russos são uma merda. A palestra foi escrita à mão. E passou para as pessoas, foi copiada.

Algumas semanas mais tarde, começaram as detenções. Foram detidos o proprietário da casa onde os jovens se reuniam e os dirigentes de uma organização ainda por criar.

— Desde então, toda a gente ficou sob a mira da KGB. Dois foram expulsos do instituto. Eu fui despedido da fábrica. A vigilância era constante. Apercebi-me de que, mais cedo ou mais tarde, seria preso. Comecei a estudar o código penal, os artigos, os comentários, as decisões dos plenários dos tribunais e voltei a ler os processos de Nuremberga.

A minha tarefa era obter satisfação moral no tribunal. No futuro, defendi-me em todos os julgamentos e os juízes ficaram surpreendidos com o facto de eu ter tais conhecimentos sem ter uma licenciatura em Direito. Procurava encontrar-me com aqueles que tinham cumprido a sua pena para saber quais eram as regras da prisão. E aprendi a regra principal que Solzhenitsyn formulou mais tarde: “Não tenhas medo de nada, não peças nada”.

Uma jovem, convidada de Mustafa-agá, levanta-se da cadeira e começa a arranjar-lhe o cabelo.

— O que está a fazer? — Dzhemilev fica confuso com a surpresa.

— Arranja-lhe as sobrancelhas também — sugere o homem, rival de Dzhemilev no xadrez. Também ele se levanta da cadeira para ajudar a mulher.

— Opá, encontraram o momento certo. O que é que quer? As mulheres já não me prestam atenção — brinca Mustafa-agá.

Foto: Oleksandr Khomenko para “História local”

Foto: Oleksandr Khomenko para “História local”

Por detrás destes momentos espontâneos e, até, um pouco cómicos, existe amor e respeito. Mustafa Dzhemilev é um líder nacional e um segundo pai para os tártaros da Crimeia. E este respeito é mútuo.

Quando os convidados de Dzhemilev decidem que a sua aparência já é suficientemente boa, continuamos a conversa.

Testes hidráulicos com o KGB

Mustafa-agá conta que, depois da escola, entrou numa escola superior agrícola em Tashkent para estudar uma especialidade técnica que não lhe interessava. Paralelamente aos estudos, envolveu-se nas questões relativas aos tártaros da Crimeia. Participou em comícios e encontrou-se com pessoas que partilhavam a mesma opinião. Transformou a sua palestra no “Breve esboço histórico da cultura turca na Crimeia nos séculos XIII-XVIII”. O KGB considerou este trabalho “uma obra com pendor antissoviético” e com posições nacionalistas. No seu terceiro ano de estudos, decidiram expulsar Dzhemilev da escola.

— Depois da reunião, fui abordado por Memet Seliametov, o diretor do Departamento de Hidráulica. Para ele, eu era um “zero” completo, porque mal sabia a sua disciplina, hidráulica. Mas ele estendeu-me a mão e disse: “Não penses que sou dessa gente, não sabia qual era o seu objetivo. Não sou tártaro da Crimeia, sou caraíta, mas estou profundamente confuso por justificarem a expulsão de um povo inteiro. O que posso fazer por si?”. E eu tinha um exame na disciplina dele. Tirei a minha caderneta de notas e ele deu-me um “bom” ali mesmo no seu joelho. Nunca na minha vida tinha tido um “bom” em hidráulica. Foi um grande apoio moral.

Caraítas
Juntamente com os tártaros da Crimeia e os krymchaks, são um povo indígena da Ucrânia, a maioria dos quais vive na Crimeia atualmente ocupada.

Depois disso, fui ao gabinete do reitor e encontrei um oficial do KGB, responsável pelos tártaros da Crimeia. Ele disse: “Permitiremos que continue os seus estudos se escrever uma nota de arrependimento, prometer tornar-se uma pessoa soviética normal e ajudar as autoridades na luta contra os apóstatas”. Estava a recrutar-me como informador. Disse imediatamente ao reitor que levaria os documentos. Felicitei o oficial da KGB por mais uma vitória sobre a contrarrevolução. Depois disso, ele chamou-me “idiota” ou “sacana”, qualquer coisa do género.

Fonte: “História local”

Detenção n.º 1

No dia seguinte, Dzhemilev recebeu um aviso de recrutamento. Recusou-se a servir. Explicou: “Recuso-me a servir no exército soviético porque não tenho pátria para defender. E não acredito que tenha inimigos fora da União Soviética”. Isto valeu-lhe o seu primeiro processo criminal e a prisão.

— Deram-me um ano e meio. Estive no campo “Kuliuk” para criminosos, nos arredores de Tashkent. Tiraram-me os atacadores dos sapatos para evitar que me enforcasse. Também usava um laço em vez de uma gravata – estava na moda na altura; também me tiraram esse laço. Estava a andar para trás e para a frente na cela, preocupado. Um dos criminosos diz-me: “Porque andas às voltas, senta-te, estás a incomodar os outros”. E eu sabia que, se me sentasse, isso significava que tinha medo dele. E isto já não é vida. E onde é que fui buscar a coragem? Estendi dois dedos como se quisesse arrancar os olhos e aproximei-me dele: “Disseste-me isso, seu sacana? Vais descansar em casa. Isto não é um hotel!”. Ele olhou para mim, magro e baixo, e eu pensei para comigo que se ele se levanta, fico colado à parede. Mas ele agiu assim: “Porque é que estás a ferver? Apenas disse que estavas a atrapalhar”. E eu continuei: “Vais descansar em casa!”. Há um princípio na prisão: não se pode mostrar fraqueza.

Um mês antes da sua libertação, Dzhemilev foi transferido para uma ala de isolamento com outro tártaro da Crimeia. Exigiram uma nota de renúncia às atividades antissoviéticas. Mustafa-agá entrou em greve de fome. No décimo dia, foi libertado da ala de isolamento sem qualquer recibo. E foi libertado da prisão com a seguinte descrição: tinha-se mostrado negativo, mantinha ligações com as autoridades criminais, era fluente em inglês e árabe, e precisava de supervisão constante.

Assim que surgiu a oportunidade, Mustafa Dzhemilev correu para Moscovo. Fez amizade com conhecidos dissidentes soviéticos: Petro Hryhorenko, Petro Yakir, Pavlo Litvinov e Viktor Krasin. Viveu durante seis meses no quartel-general das forças antissoviéticas, no apartamento do general Hryhorenko, que se tornara advogado dos tártaros da Crimeia. Chamava a mulher de Petro “a minha mãe russa”.

Petro Hryhorenko
Ativista ucraniano dos direitos humanos, dissidente soviético. Foi um dos cofundadores da União de Helsínquia de Moscovo e da Ucrânia, tendo defendido os tártaros da Crimeia e outros povos deportados.

Apenas seis meses haviam decorrido entre a sua libertação e a sua detenção. Dzhemilev foi constantemente seguido pelos agentes. Durante algum tempo, conseguiu escapar.

— Em 1968, após a ocupação da Checoslováquia, começaram as detenções em massa de dissidentes. Nessa altura, eu vivia com a minha irmã. Ao fim da tarde, reuni todos os meus documentos para os destruir de manhã. E pela janela vi um investigador. Saltei pela janela com o material, vestido com uma T-shirt, calças e meias. No quintal, escondi-me no milho. Regressei à noite. A minha irmã estava a chorar; tinham-lhe levado o marido. E deixaram-me uma notificação para interrogatório. O meu genro foi condenado a três anos. Mais tarde, a minha irmã gozou com ele: “Na verdade, vieram buscar o Mustafa, mas o Mustafa não estava lá, por isso levaram-te para não irem de mãos vazias.”

Detenção n.º 2

Mustafa Dzhemilev andou à solta durante algum tempo. Em setembro de 1969, foi preso. Por “divulgar ficções deliberadamente falsas que difamam o Estado soviético e o sistema social”.

Dzhemilev conta que um dissidente russo, o poeta Illia Gabai, também foi preso no mesmo caso. Foram mantidos juntos no centro de detenção de “Lefortovo”.

— Depois de ter sido libertado, fui visitar o meu cunhado. Estávamos a tratar do quintal, a ouvir a Voz da América. Tínhamos um rádio “Spinola”. Ouvi uma mensagem: “Hoje, o conhecido dissidente Illia Gabai atirou-se da janela do seu apartamento no 12.º andar”. Não acreditei. Uma semana antes, tínhamos falado com ele ao telefone. Fui aos correios e telefonei à mulher dele. E ela confirmou que ele próprio o tinha feito, deixando um recado. Estava deprimido porque tanto Petro Yakir como Krasin tinham testemunhado contra ele. Suportava mal o ambiente da prisão. Era um intelectual, e lá estava rodeado de criminosos – palavrões, crueldade. Não aguentou.

Illia Gabai
Escritor, professor e dissidente soviético de origem judaica. Nasceu em Bakú, no Azerbaijão. Lutou pelos direitos civis e participou na luta pela autonomia dos tártaros da Crimeia. Foi perseguido pelas autoridades soviéticas e preso várias vezes. Suicidou-se em 20 de outubro de 1973.

Detenção n.º 3, processo n.º 4

Dois anos mais tarde, Mustafa Dzhemilev foi provocado para um conflito e preso durante 15 dias por hooliganismo. O dissidente tártaro da Crimeia entrou em greve de fome, teve uma úlcera no estômago e recusou-se a frequentar um treino militar de seis meses. Por este facto, foi condenado a um ano de prisão.

Fonte: “História local”

Na colónia penal de Omsk, pouco antes da sua libertação, Dzhemilev apercebeu-se de que não seria libertado e que estava a ser preparado um novo processo. Os investigadores interrogaram os seus companheiros de cela e acabaram por encontrar um prisioneiro que testemunhou contra ele; e apreenderam os seus escritos.

— Tiraram a “Declaração de princípios do movimento nacional do povo tártaro da Crimeia”. Escrevi-a em estilo árabe. A língua é uma mistura de inglês, tártaro da Crimeia e russo, com o máximo de abreviaturas. Eles decifraram-na. Foi convidado o diretor do Departamento de Língua e Literatura Inglesa da Universidade de Omsk e a parte árabe foi traduzida por uma professora de Tashkent. O texto foi restaurado em 90%. Apercebi-me de que iriam acrescentar um artigo penal ao meu ficheiro e julgar-me sem me deixarem sair da prisão. Por isso, entrei em greve de fome. Escrevi uma carta ao académico Andrei Sakharov. Consegui passá-la. E o Sakharov iniciou uma campanha sobre a minha greve de fome.

Andrei Sakharov
Físico soviético, vencedor do Prémio Nobel da Paz (1975) pela sua luta em prol dos direitos humanos em todo o mundo. De 1980 a 1986, esteve preso com a sua mulher Yelena Bonner.

Em 1975-1976, o caso de Mustafa Dzhemilev foi objeto de grande cobertura por parte da imprensa ocidental. Graças à sua prolongada greve de fome, o mundo ficou a conhecer um povo inteiro expulso da sua terra natal.

No sétimo mês de greve de fome, o jornal britânico The Times noticiou que Dzhemilev teria morrido na prisão de Omsk.

— Aconteceu o seguinte: a minha mãe veio a Omsk para me ver. E o chefe do campo disse-lhe: “O seu filho não está aqui, vá-se embora”. E ela foi a Moscovo ter com Sakharov, em lágrimas. Sakharov e Hryhorenko deram uma conferência de imprensa e anunciaram que era possível que Dzhemilev tivesse morrido. A informação correu o mundo. Na Turquia, cantaram orações fúnebres nas mesquitas, compuseram poemas e destruíram consulados soviéticos.

Muitos anos mais tarde, Dzhemilev conta esta história com um sorriso. Como se aqueles 303 dias de fome não fossem nada de extraordinário. A sua voz não treme, mesmo quando fala do procedimento de alimentação forçada.

— Caso haja um cheiro fétido na boca, é sinal de morte. Os guardas prendem as mãos, usam um dilatador para abrir os maxilares, normalmente partindo os dentes, inserem uma mangueira e deitam um líquido nutritivo. Este líquido suporta a atividade vital. É rapidamente absorvido, mas no espaço de uma hora sente-se novamente fome.

No 7.º ou 8.º mês da minha greve de fome, vieram ver-me um terapeuta e um psiquiatra. O terapeuta examinou-me e mediu-me a tensão arterial. O psiquiatra começou a fazer perguntas. Eu disse ao psiquiatra: “Porque está aqui? Não me declarei Napoleão, não mordo as pessoas”. Ele respondeu-me que uma pessoa pode desenvolver perturbações mentais após uma longa greve de fome e que a sua tarefa era verificar o meu estado. Quando ficámos sozinhos, disse-me: “Na verdade, tenho de o desencorajar de fazer uma greve de fome, mas o meu conselho é que continue até ao fim. Isto é um golpe terrível para eles. Agora estão a escrever muito sobre si. Persista”. E foi-se embora.

Dzhemilev foi levado para o tribunal, que teve lugar em 14 de abril de 1976, em Omsk, numa maca. Não conseguia deslocar-se sozinho.

Da esquerda para a direita: Yelena Bonner, Safinar Dzhemileva, Mustafa Dzhemilev, Andrei Sakharov. Arquivo de Mustafa Dzhemilev

O próprio Andrei Sakharov foi ao julgamento. Não lhe foi permitida a entrada na sala. Na confusão, um polícia empurrou Sakharov e foi esbofeteado pela sua mulher, Yelena Bonner. O casal foi atirado para dentro de um carro e levado para fora da cidade. Entretanto, o tribunal condenou Dzhemilev a dois anos e meio de prisão numa colónia penal de regime rigoroso.

— Depois do julgamento, encontrei-me com a minha mãe e o meu irmão através do vidro. A minha mãe desatou a chorar, sentiu-se mal. E o meu irmão disse: “Eu sei que não vale a pena dissuadir-te”. Colocou no vidro uma mensagem de Sakharov. Escreveu-a de forma muito comovente: “Meu filho, fiz tudo o que estava ao meu alcance para que fosses libertado e para que o teu caso fosse conhecido por todo o mundo. A tua morte só fará a alegria dos nossos inimigos. Por isso, peço-te agora que cesses a tua greve de fome”.

Durante a conversa, Dzhemilev conta constantemente piadas. Mas quando se recorda disso, surgem-lhe lágrimas nos olhos. As palavras de Sakharov obrigaram-no a parar a greve de fome com a escrita de uma declaração na própria sala de visitas.

Depois disso, Mustafa foi levado para o hospital. Dois meses mais tarde, estava a caminho do Extremo Oriente, do campo de regime rigoroso “Primorskyi”.

— Chegámos num grupo de cerca de 30 prisioneiros. O procedimento é o seguinte: ficamos sentados numa secção especial até sermos levados para uma unidade. Todos são chamados para uma conversa e é determinado para que unidade serão enviados. Trataram de toda a gente menos de mim. Dizem que o chefe do campo quer falar comigo pessoalmente e que estará aí dentro de dois dias. Passam dois dias e chamam-me. Entro, digo-lhe o meu nome, sexo e pena. E ele olha para mim, assim: “És o Dzhemilev? Mustafa?!”. Eu digo-lhe: “Sim”. Ele começa a rir-se. Eu penso: o que é que se passa? E ele explica: “Não te sintas ofendido, falaram-me tanto de ti, pensei que ia entrar um tipo grande e que ia revoltar o campo, mas tu és assim”.

Após uma esgotante greve de fome, Dzhemilev não estava apto para o trabalho físico, pelo que foi enviado para trabalhar como assistente de laboratório. Rapidamente fez amigos, porque era capaz de encontrar uma linguagem comum com toda a gente.

 — Se a administração não criasse provocações, era possível conviver com os criminosos. Os políticos interessavam-lhes, porque eram letrados. Chamavam-me “Político”. Vinham para consultas. No campo de Omsk, deram-me a alcunha de “Procurador”. Traziam-me os processos, eu lia-os e, se não encontrasse nenhuma pista, dizia-lhes: acalma-te, foste preso corretamente; e, se encontrasse, ajudava-os a redigir inquéritos e queixas para que o processo fosse revisto.

Depois de regressar do campo, Dzhemilev foi mantido sob vigilância, sendo todos os seus movimentos monitorizados. Nunca se “recuperou”, como exigia o sistema soviético de aplicação da lei. Andava com pessoas pouco fiáveis e assinava cartas de apoio a dissidentes. Mustafa-agá dirigiu-se à direção da Assembleia da URSS com um pedido de revogação da sua cidadania e de autorização para abandonar a União. Acrescentou que estava disposto a mudar de opinião se os tártaros da Crimeia fossem autorizados a regressar a casa.

Mustafa Dzhemilev. Yacútia, 1979. Arquivo pessoal

Detenção n.º 5 e o casamento

Em 1979, Dzhemilev foi condenado a um ano e meio de prisão. A sentença foi alterada para quatro anos de exílio na Yacútia.

— Os nossos amigos enviaram um homem jovem e forte para viver perto de mim e para me guardar. Ele falou-me de uma mulher patriota e bonita, cujo marido tinha morrido de cancro; ela tinha ficado com o filho. Ela era tão patriota que queria vender a casa, ir viver com os pais e doar o dinheiro ao movimento nacional tártaro da Crimeia. Fiquei impressionado com o facto. Pedi-lhe a morada e começámos a corresponder-nos.

Mais tarde, houve muitas piadas sobre o porquê de ela ter casado comigo. Eu respondia que ela tinha ouvido na rádio que eu não comia durante 303 dias, por isso pensou que se livraria das tarefas da cozinha.

Mustafa Dzhemilev e a sua esposa

Mustafa Dzhemilev desata a rir. Acende novamente um cigarro, o décimo primeiro durante a conversa. Com o mesmo tom de brincadeira, continua a contar a história do seu amor, como se apaixonou por cartas e por uma bela moça numa fotografia. 

— Ela chegou no verão. Fomos à conservatória do registo civil para casar. Ela pôs a sua assinatura. E eu fiquei à espera. O funcionário do registo civil disse: “Porque não assina?”. Olhei para Safinar e perguntei-lhe: “Não me vais ofender?”. Ela disse: “Não, não.” E só depois disso é que assinei. No exílio, tivemos um bebé e regressámos já com o nosso filho Kheisar.

Três dias na Crimeia. Prisão n.º 6

Em fevereiro de 1983, terminou o seu exílio e Dzhemilev deixou a Yacútia em direção à Crimeia. Para o local onde nascera, do qual não se lembrava de todo, e com o qual sonhara como uma terra prometida durante 39 anos da sua vida.

A família Dzhemilev permaneceu na península apenas três dias. Foram colocados num carro e levados para fora da Crimeia. Depois, a família regressou ao Uzbequistão, à cidade de Yangiiul. Aí, Mustafa Dzhemilev começou a editar um boletim informativo ilegal do Grupo de Iniciativa Musa Mamut dos tártaros da Crimeia e depressa se viu novamente sob o jugo da repressão.

Dzhemilev foi preso em novembro de 1983, seis meses após o seu regresso do exílio. Foi acusado de compilar e distribuir documentos que difamavam o sistema soviético e o seu sistema político, de gravar emissões de rádio de países inimigos e de organizar motins em massa. Foi condenado a três anos de prisão.

Foi enviado para cumprir a pena numa colónia de regime rigoroso na região de Magadan, mais uma vez, junto de criminosos. Mustafa Dzhemilev resume: nunca esteve num campo de prisioneiros políticos.

Mustafa Dzhemilev à entrada da aldeia de Ai-Serez, Crimeia, 2005

Detenção n.º 7 e Reagan

Em 1986, foi aberto outro processo penal contra Mustafa Dzhemilev. Foi o último na União Soviética.

Dzhemilev foi condenado a três anos de liberdade condicional e saiu da sala de audiências. Ficou em liberdade devido à pressão de Reagan sobre Gorbachev; os EUA defenderam os presos políticos do Kremlin.

A grande e poderosa União Soviética estava a implodir. E aí também se encontrava o mérito de Dzhemilev, fruto de 15 anos de cativeiro na prisão e no exílio.

— Tashkent, Khavast, Moscovo – “Lefortovo”, Omsk, Novosibirsk, Irkutsk, Vladivostok, campo “Primorskyi”, campo de Omsk, Petropavlovsk — Mustafa-agá enumera os locais onde cumpriu a sua pena.

Com o seu humor habitual, acrescenta: “Mostraram-me o país inteiro. Mas através dos carros do KGB”.

Detenção n.º 8. Rússia

Hoje, Dzhemilev está a ser julgado novamente. Na ausência do arguido. Ao abrigo de três artigos do Código Penal russo. Os ocupantes russos na sua Crimeia natal montam o seu espetáculo: abrem sessões, interrogam testemunhas, criam a aparência de um processo legal. A própria casa de Dzhemilev está fechada desde 2014.

— O regime soviético tinha medo da comunidade mundial. Gastou milhares de milhões em propaganda. Não queria que informações negativas chegassem ao exterior da União. E Putin não quer saber de nada. Chegou ao limite. Só para assustar e manter o poder.

Foto: Oleksandr Khomenko para “História local”

Hoje em dia, são mais ativos fisicamente na obtenção de testemunhos (espancamentos, torturas – trad.). Sem autorização, cercam uma casa, invadem-na, deitam toda a gente ao chão e “estripam-nos”. Porque ouviram alguma coisa na mesquita. Atualmente, há 77 tártaros da Crimeia nas prisões russas, a maior parte deles acusados de terrorismo — resume Dzhemilev.

Há um grande mapa da Crimeia no corredor do seu apartamento em Kyiv. Tem os nomes antigos das povoações, em tártaro da Crimeia, como existiam antes da revolta de outubro de 1917. O mapa não está lá para lembrar de quem é a Crimeia. É uma garantia de que Mustafa Dzhemilev regressará definitivamente à península. Tal como fez em 1989. Porque a Crimeia é a sua pátria, o seu lar.

Material preparado por

Fundador do Ukraïner:

Bogdan Logvynenko

Autora:

Khrystyna Kotsira

Tradutor:

Anna Bogodyst

Editor de tradução:

Guilherme Calado

Coordenadora de Ukraїner International:

Yulia Kozyryatska

Editora Chefe do Ukraïner Internacional:

Anasstacía Marushevska

Gerente de conteúdo:

Leila Ahmedova

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